Hearts & Minds

Há 35 anos foi lançado no Brasil o filme Corações e Mentes. Mais incisivo documentário sobre a guerra do Vietnã, a obra dirigida por Peter Davis celebrizou-se pela denúncia da crueldade contra civis empregada pelo exército norteamericano no conflito, simbolizada na célebre foto (tirada em 1972 por Nic Ut) da garotinha vietnamita Kim Phuc correndo com o corpo nu queimado por Napalm.

Além da inegável importância histórica do filme, ele tem, para mim e para minha família, um significado especial, pois representou um dos momentos de maior risco que meu pai correu de ser apanhado pelas forças repressivas do regime militar.

Esta é uma história verídica e nunca tornada pública por nós, sendo que tampouco tive a oportunidade de lê-la escrita por alguma das outras pessoas que a vivenciaram. Trata-se, é evidente, de um episódio ínfimo (do ponto de vista das consequências vivenciadas individualmente por meu pai) se comparadas às brutalidades cometidas pelo regime militar – relatadas em documentos como o livro Brasil Nunca Mais -, mas que atingiram duramente, como ficará evidente, outros participantes do ocorrido.

É, no entanto, um relato ilustrativo do grau de cerceamento da liberdade individual durante o período que uma certa imprensa ousa hoje chamar de “ditabranda”, e do grande risco que cidadãos comuns, sem envolvimento direto com a luta política, corriam de serem enredados na teia de tortura e arbitrariedades de um aparelho repressor sem controle nem limites.

Meu pai foi ver Corações e Mentes no Cine Arouche, no centro de São Paulo. Embora fosse um homem de esquerda, simpatizante do comunismo, e temesse a repressão por conta de alguns textos analíticos e poemas políticos que publicara, tocava a vida e sustentava a família trabalhando num banco (emprego que odiava), restringindo suas opiniões sobre o regime para o círculo de amigos e para as noites boêmias do então seguro e potável centro de São Paulo (que adorava, boemia e local).

Um tanto por exigência do emprego, um tanto por vaidade pessoal, vestia-se muito bem, com ternos de casimira inglesa, pulseiras de prata, costeletas e cabelos compridos, de acordo com o modelito “playboy anos 70” – a tal ponto que um primo bulia, sempre que o via adentrar a casa de minha avó:

– Chegou a elegância e o dinheiro!

Certamente impressionado pela “pinta” do cidadão (ao menos foi o que meu pai imaginou), o porteiro do cinema insistiu para que ele visse o filme da sala 2, um “enlatado” hollywoodiano, argumentando que Corações e Mentes não era “uma fita apropriada pra um cavalheiro como o senhor”. Ele achou aquilo de um absurdo atroz, mas o funcionário foi muito insistente. Após quase chegarem à discussão, ele acabou entrando para ver o longa documental, que o impressionou desde a primeira sequência. As razões da insistência inusitada do porteiro logo se explicariam…

Quando o filme retratava um dos bombardeios mais violentos sobre uma vila vietnamita, em que toneladas de bombas eram lançadas contra pobres cidadãos indefesos, a luz de súbito se acendeu. A projeção foi interrompida. Militares, em trajes camuflados, cercavam a platéia, nos corredores laterais e à frente, apontando metralhadoras aos espectadores.

Seguiu-se um tempo que pareceu uma eternidade. Dois homens entraram, ambos vestindo japonas beges com zíper. Um deles era o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Sem dizer uma palavra, passaram a percorrer fileira por fileira, olhando fixamente as feições de cada espectador. Ao comando de um dos dois, o sujeito era retirado da sala por soldados. A lenta operação foi repetida diversas vezes, com vários indivíduos sendo presos e nenhuma palavra, exceto o fatídico “Você, fora!” que determinava a sorte do indigitado.

Num dado momento, não aguentando mais e tomado pela exasperação, um homem abriu ostensiva e estrepitosamente um jornal. Foi imediatamente preso.

Ao fim de cerca de duas horas, Fleury virou-se para a audiência, desculpou-se e, identificando-se como delegado do DOPS, disse que eles foram obrigados a interromper a sessão porque ali se dava atividade subversiva – alguém, segundo ele, estaria distribuindo panfletos na sala. Nenhum desses supostos impressos jamais chegou às mãos de meu pai.

Os homens se retiraram, mas podia-se ver a fila dupla de soldados à saída do cinema. O filme recomeçou, mas quem conseguia prestar novamente atenção nele depois do que se passara? Imaginavam apenas o que os esperava lá fora. No mínimo, passaremos por um corredor polonês, pensou meu pai; no máximo, iremos todos presos, seremos barbaramente torturados e até mortos.

O filme acabou e ninguém saía do cinema. Após não aguentar mais esperar, meu pai foi o primeiro a se levantar, seguido por outros. Passou incólume pela fila dupla de soldados e, ao chegar à rua, defrontou-se com uma operação de guerra: brucutus sobre a grama do Largo do Arouche, diversos veículos militares nos arredores; investigadores e delegados, aparentemente comandados por Erasmo Dias, numa operação planejada com o intuito deliberado de captar esquerdistas – o público que mais tenderia a se sentir atraído por um filme que fazia uma denúncia contundente do imperialismo belicista dos EUA de então.

As pessoas retiradas da sala haviam sido todas encapuzadas e estavam algemadas, de pé, numa espécie de perua militar. Que destino atroz as esperava?

Meu pai teve que atravessar a confusão de veículos militares para resgatar sua Brasília marrom, parada em pleno largo. Veio dirigindo com o coração na mão e só se convenceu de que não estava sendo seguido quando contornou o obelisco do Ibirapuera, deixando a 23 de Maio. Em casa o esperavam minha mãe, a filha de 4 anos e este blogueiro, então uma criança inocente dos riscos de ser preso e torturado que seu pai correra – pela simples decisão de assistir a um filme. E ainda há quem defenda a ditadura militar brasileira.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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