Jô e Fernanda Montenegro explicam talento de Carl Reiner e Michel Piccoli

O americano Carl Reiner morreu na segunda-feira, aos 98 anos. O francês Michel Piccoli se foi há um mês e pouco, aos 94. Um era ator cômico e o outro, dramático. E ambos obtiveram o afeto de seus pares e do público sem terem sido astros, galãs e, muito menos, celebridades.

Raramente eram protagonistas: ninguém ia ao cinema, ou ao teatro, ou ligava a televisão, exclusivamente para vê-los em ação. Ainda que não atraíssem multidões, os dois foram essenciais à arte e a outros artistas.

Michel Piccoli deu vida ao talento de dúzias de diretores, sobretudo ao gênio de Luis Buñuel. E sem Carl Reiner o humor americano seria mais pobre. De Sid Caesar a Steve Martin, passando por Dick Van Dyke e Woody Allen, trabalhou com todos os grandes —escrevendo, dirigindo e contracenando.

Além da generosidade, compartilharam o gosto pela palavra falada. Precisaram tão-somente da pureza da voz para expressar diferentes desvãos e descaminhos da experiência humana. A elocução deles era antagônica e, mais uma vez, ambos a puseram a serviço dos outros.

É o caso do “Homem de 2.000 Anos”, que nasceu de uma pergunta improvisada de Carl Reiner a Mel Brooks: “Você estava presente na crucifixão, conheceu Jesus?”. “Oh, boy, claro que conheci”, respondeu o outro. “Ia sempre à minha loja com 12 caras, todos de sandália. Nunca comprou nada.”

A brincadeira virou um diálogo no qual Carl Reiner fazia um repórter que entrevistava o hiper-Matusalém. Este explicava sua longevidade por não comer fritura nem correr para pegar o ônibus. Dizia que namorara Joana D’Arc, mas o caso não foi adiante “porque ela tinha uma missão”.

Durante uma década, a dupla apresentou o esquete em festas de amigos. Com um sotaque judaico hilário, o Homem de 2.000 Anos contava que o medo era motor de propulsão no início dos tempos: “Uma fera rosnava, e a gente corria duas milhas em um minuto”.

Ele se casara 700 vezes, tivera 42 mil filhos, “e nenhum deles vem me visitar”. Comentava que investira numa peça perdida de Shakespeare —“A Rainha Alexandra e Murray”— e que o dramaturgo tinha uma caligrafia péssima. Não fizeram o esquete em público: era uma diversão entre eles.

Até que um produtor sugeriu que registrassem alguns diálogos. Se não gostassem do resultado, destruiriam a fita. Os dois convidaram uma plateia de amigos, gravaram um disco ao vivo e, como disse Mel Brooks, “nos rendemos ao capitalismo”.

Lançado em 1960, o disco vendeu 1 milhão de cópias. Cary Grant o levou ao Palácio de Buckingham e até a rainha Elisabeth morreu de rir.

Fizeram mais quatro discos, todos de sucesso estrondoso. São ouvidos até hoje porque retêm o prazer da criação, a gratuidade da arte pela arte.

O pândego Homem de 2.000 Anos não existiria sem a cara de pau de Reiner, sem a sua disposição em servir de escada para os absurdos de Brooks. “Ele tinha a humildade do grande talento, o que esclarece muita coisa”, diz Jô Soares, que encomendou o livro de memórias do humorista ao saber da sua morte.

Com Michel Piccoli o caso foi outro. É o que explica Fernanda Montenegro: “Ele pertence à categoria fundamental na dramaturgia que é a do ator central. Onde houver necessidade da credibilidade cênica, lá tem que estar um Michel Piccoli: luz, inteligência e emoção exata. Olho em volta e não vejo ninguém à sua altura”

O ator usou sua luz, inteligência e emoção para iluminar e aclarar um texto crucial da literatura moderna, os “Pequenos Poemas em Prosa”, de Baudelaire. Gravou-os na íntegra, em quatro CDs preciosos.

Prodigiosos, eles não são apenas declamação. Servem de introdução, expressão, comentário e até de crítica literária. Piccoli faz tudo isso por meio exclusivamente da voz, de modulações e de ênfases, sem dizer uma palavra que não esteja na obra prima, na difícil beleza de Baudelaire.

A literatura é tida por uma operação cerebral. Nem sempre foi assim. Ela começou antes que a escrita fosse inventada. Os cantos da “Odisseia” e da “Ilíada” eram recitados por rapsodos em praças gregas. Congregavam, ensinavam, socializavam.

A poesia vem do corpo e se destina ao aqui e agora. Isso ocorre quando o Baudelaire do rapsodo Michel Piccoli parece falar de livros de autoajuda, ou de economistas, lidos durante a pandemia.

“Confinei-me no quarto com livros na moda”, diz. São livros que ensinam povos e pessoas a serem “felizes, sábios e ricos em 24 horas”. E aí os “empreendedores da felicidade pública aconselham os pobres a serem escravos”.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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