Medo

Saber o medo. Da auto-suficiência no medo ao pavor mais legítimo. Viver de arrepios e de pressentimentos. De sustos gelados e ameaças atrás da porta. E entender o medo como a nós mesmos. Isso é ser medrosamente humano. Isso é sobreviver ao medo. (A origem do medo: vem da Noite dos Tempos. E dos dias piores. Do ronco do trovão e do ronco do es­tômago. Da fagulha do raio e da fagulha de inteligên­cia. Da união da força e da força da União. O medo vem da evolução. E vice-versa.). Os tempos são de medo. Mas o medo não tem hora. Agora, por exemplo, está faltando um minuto para o próximo medo. E há medo pelo crediário.

À vista, com menos sobressaltos. E medo dentro dos refrigerantes. Medo dentro dos ônibus. As pessoas com mais medo devem dar um passinho ao fundo do corredor. As sem medo, um passo à frente, se houver coragem. O medo movimenta.O medo pode ser em estado sólido e balançar na mio do guarda; líquido e poluído, correndo para o mar, fazendo marés aterradoras; e gasoso, em certas câmaras. Pode ser também um estado de espírito, um estado de nervos, um estado interessante ou um estado de coisas. Como um estado de sítio. Ou, ainda, o Es­tado, simplesmente. Em suma: o medo é a alma em es­tado de coma. E o medo conhece melhor o corpo. É especialista em cãibras e desmaios. O medo passeia pela medula e nisso é intimo de cada vértebra. O medo gosta de adrenalina e detesta intervalos normais entre sístoles e diástoles. O medo aprecia perder a cabeça, mas nunca é a dele.O medo conhece muito o corpo. E está na cara pá­lida. Hidrata os poros da testa. Baixa e pisca os olhos. Tem papas na língua e jamais dá com ela nos dentes.

E gagueja. Conhece bem o corpo. Conhece as mios: esfrega nervosamente uma na outra. Faz figa, sinal-da-cruz e continência. Bate na madeira. E ainda por cima rói as unhas. Conhece mais o corpo: as pernas. Andando sempre com um pé atrás, evitando levantar ou com o esquerdo ou com o direito ou até com os dois, nunca dando o passo maior que os membros inferiores inferiorizados pelo medo e ensebando as canelas inclusive dos perne­tas.

Por isso o medo dói pelo corpo inteiro, de quem está inteiro depois dele. Dói debaixo da pele, bem ali onte temos o amor a própria. Dói no cérebro, entre um pensamento realista e outro. Às vezes, dizem, é apenas psicológico, mas então dá um medo de consul­tar um psicólogo! Confessar o medo? Só por medo. Quem já teve medo teve hematomas. Os que nada tem a temer, esses temem um dia ter medo. Mas, em geral, a todos o medo já provocou alguma reação. Capi­lar, por exemplo. E fica-se de cabelo em pé só em lembrar disso. Pra tumultuar a imaginação, o medo circula pelas hipóteses. Põe, por acaso, erro ou coincidência, nosso nome num fichário policial. Afia tesouras doidas por páginas e fotogramas de criativas autorias. Sonda os laboratórios de análises clinicas à procura de um diagnós­tico de neoplasia maligna. E tenta pedir um aumento ao patrão.Toca a campainha às três da madrugada e não é ninguém. Atiça o cachorro louco na hora que você vai passando.

Mostra um revólver na cintura do belo tipo faceiro que está sentado ao seu lado. Põe chiclé no butijao ao menor cheirinho de gás. Pára elevadores entre os andares. Oferece doces às criancinhas na praça. Atrasa o táxi que vai à rodoviária ou ao aeroporto. Faz o eco das passadas da gente pelo mato, que dificil­mente anda com o mesmo ritmo das nossas. Aparece feito espuma na lata de conserva recém comprada e aberta. Some bastante tempo com parentes e familiares que foram logo ali e já voltavam. Incentiva a ejaculaçao precoce nos amantes de mulheres cujos maridos chega­rão a qualquer instante. Deixa um pacote esquisito na sua porta. Pergunta uma informação esquisita na rua. Bota idéias esquisitas na coluna do jornal… Só na sauna não percebemos o medo.

Porque sua­mos no molhado. O medo é a dinâmica das varas verdes. O silêncio do casario. A trajetória do gato preto. A soma das cores da escuridão. O ruído sem ondas sonoras. O medo medra. Sou um simples mortal. E quem quiser provar o contrário vai ter que passar por cima do meu cadáver.

(“Punidos Venceremos”, 1980)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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