Kombi

Domingos Oliveira, para mim, é e sempre será o antônimo da morte

Sonhei que estava no banco do meio da antiga Kombi do meu pai, cercada por ruidosos atores do Teatro Oficina. Ao dobrar uma esquina, o carro parava, alguém abria a porta e Jair Bolsonaro pedia carona, ao lado de Michelle e o filho caçula do presidente —o que passou o rodo nas meninas do condomínio Vivendas da Barra.

Nem em sonho a mistura do Oficina com o Messias parecia lógica. Espremida entre a primeira-dama e uma atriz de vanguarda vestida de preto fatal, eu arriscava a pergunta: “Jair, o que é que você está fazendo nessa kombi?!”.

Recém-chegado da viagem aos Estados Unidos, o presidente precisava chegar o quanto antes ao Congresso, onde a votação de uma pauta importante o aguardava. Seguíamos aboletados, como se o convívio e o destino comum fossem possíveis.

Apesar do desejo onírico, não há como conciliar minha infância nas coxias de teatro com as novas diretrizes éticas e morais que, hoje, controlam o Brasil.

Caso tivesse ocorrido naquele dia, tenho certeza, o choque com a morte de Domingos Oliveira o teria colocado ao volante da minha Kombi sem direção.

Toda memória se assemelha a um sonho.

Conheci Domingos criança, na casa dos meus pais. Me lembro do estranhamento de vê-lo na sala, com as pernas finas metidas numa bota de cano alto até o joelho, o tronco curto coberto por uma
camisa bufante e a cabeça adornada por uma cabeleira farta. Era uma mistura de poeta do século 19, pirata e hippie de butique.

Domingos disparava máximas com a sofreguidão de um romântico. Apesar da paixão incondicional pelas mulheres, pelos amigos, pela arte e pela vida, era um homem racional. Na sua escala de valores, nunca houve revolução, causa ou luta de classe que se comparasse, em importância, aos sentimentos, ao amor e à amizade.

Numa era brutal como a que atravessamos, na qual a radicalidade dos anos de chumbo retorna tosca e rastaquera, perigosa e oportunista, o legado de Domingos pode ser lido, mais uma vez, como frivolidade burguesa. Mas não.

Para os que amaram “Todas as Mulheres do Mundo” e “Edu Coração de Ouro”; para os que, como eu, estrearam com ele na adolescência e estiveram diante de Domingos numa sala de ensaio; para os que admiraram o profundo conhecimento que esse artista inatual tinha da dramaturgia e a maneira suicida com que transformava seu cotidiano em drama; para os que, como Caio Blat e Pedro Cardoso, o encarnaram na ficção; para os que assistiram ao velho Domingos revisitar sua juventude no maravilhoso “Barata Ribeiro 716”; para todos os que o amaram e festejaram, resta a certeza de que, em momentos tristes como os de agora, só nos resta ser gauches.

“Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Domingos! ser gauche na vida./ As casas espiam os homens/ que correm atrás de mulheres./ A tarde talvez fosse azul,/ não houvesse tantos desejos./ O bonde passa cheio de pernas:/ pernas brancas pretas amarelas./ Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.”

Há um ano, ele me disse que os remédios do Parkinson provocavam alucinações tétricas nele. Era comum que acordasse cercado de estranhos no quarto, sentados na cama, ou o observando do armário. E lhe vinha um medo que em nada correspondia àquilo que era.

Nas últimas semanas, no entanto, o pânico arrefeceu. Estava jogando dados com a neta, quando a pressão caiu e, sem agonia, ele partiu. Uma cortesia dada pela natureza, diz o próprio, num vídeo premonitório que corre à solta na internet, aos homens lúcidos que optaram pela vida. 

Domingos é e sempre será, para mim, o antônimo da morte.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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