A prerrogativa do sim

Apagar-me, para que meus olhos possam acostumar-se com o escuro. Toco onde está a falta, a fala, o silêncio. Onde se forma o vazio, onde está a essência, onde se encontra a raiz dos sonhos. A origem da linguagem.

Na matemática imprecisa dos gestos, a vontade de mergulhar no abissal mundo dos segredos profundos, do rasgo em que se ouve a falha, a faísca do possível, o caminho sem volta.

A pele se transforma em veludo, costuro-a para que me proteja das tempestades, para que me aqueça, para que carregue junto ao vento as poesias, para que sopre bem leve na minha nuca, para que a delicadeza seja uma forma de salvação.

Uma cicatriz invisível se abre entre as frestas do corpo. Tudo expande, dilata, permanece. Sem sangrar a memória, lembro o medo de altura, a sensação vertiginosa de olhar para baixo. O abismo a um passo do concreto. O ínfimo segundo que te move para trás. Ou para frente.

O lugar onde estão os medos, os sonhos, os vãos, as esquinas que levam ao imprevisto, ao imprevisível, à dúvida. Os espelhos prolongam as matizes, a pele-veludo faz girar o caleidoscópio das luzes, brilha, ilumina.

Cubro-me com a ausência das cores. Volto à origem, à substância, ao que se sente e não se vê.

Faço do não a prerrogativa do sim.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Marianna Camargo e marcada com a tag , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.