Memórias – 2008

© Daniel Castellano

E como o dia 5 de dezembro de 2008 é um dia e tanto, pela manhã morreu o Valêncio Xavier. Aos 75 anos. Outro guerreiro. Lembranças? A longa batalha que foi escrever e dirigir “Paisagem de Meninos”, em 1993, baseada num livro belíssimo, escrito, idealizado e elaborado nas ilustrações e palavras, por ele, Valêncio: “Poty – Trilhos, Trilhas e Traços”. O tema? Claro, a biografia de Poty Lazarotto. Eu estava desenvolvendo um espetáculo com texto a quatro mãos, (minha e do Enéas Lour), e um dia o Valêncio, na Cantina do Teatro Guaíra, me entrega um lay-out completíssimo, do livro que iria ser editado no ano seguinte pela Fundação Cultural de Curitiba.

Era um livro segredo, um tesouro que ninguém podia ver antes da edição. Já estávamos ensaiando há quase um mês, mas o livro mudou minha leitura para o espetáculo e eu resolvi começar tudo de novo. Foi uma boa decisão, mas na época, quase me deixou maluco. Perdi noites de sono por ansiedade, desespero e dúvidas. O livro é um escândalo, uma exuberância que mistura todas as linguagens gráficas possíveis. Uma obra-prima em quase 200 páginas de lembranças, relatos, pensamentos, pranchas, ilustrações que pareciam perdidas no tempo, fotos, manias curitibanas e mais centenas de outras imagens, fruto de associações que só o Valêncio com sua imaginação delirante poderia ter.

Uma biografia originalíssima de Poty Lazarotto e imagino que poucos artistas, em vida, tiveram um homenagem/presente daquela grandeza. E voltando ao espetáculo de teatro. Verdade é que o tempo foi curto demais e eu não tive como elaborá-lo e depurá-lo como merecia. Ainda assim, iluminado pelo grande Poty e pela paixão que o Valêncio tinha pelo artista; paixão clara e evidente, no livro, o espetáculo saiu; e com grande beleza plástica, graças também ao cenário de Rosa Magalhães e à luz surrealista de Beto Bruel. Um milagre das artes cênicas não ter sido um completo desastre, já que eu não conseguia, por inexperiência e pressão dar um formato definitivo a ele.

O livro é, ao estilo do Valêncio, um mosaico de colagens, de espírito gráfico e moderno e isto influenciou o espetáculo que também seguiu esse caminho. Muitas das pranchas de Poty Lazarotto estavam vivas, em movimento, no palco do Guairinha e muitas de suas reminiscências infantis e adolescentes também estavam lá. Meio caóticas, como o livro. Mas conscientes também. Depois, graças à “Paisagem de Meninos”, título que dei à peça em homenagem a Theo Angelopoulos e seu filme “Paisagem na Neblina”, o Fernando Severo pediu pra transformar um fragmento do texto, num roteiro de cinema.

A cena de Haroldo, o Homem Relâmpago, que ajuda o menino, Francinha, a entrar no cinema, porque não tinha sapatos e no seu tempo, só punha os pés na sala quem estava calçado. Num dia doloroso, de esperanças perdidas, de adeus definitivo a um tipo de amor, eu escrevi o roteiro com o coração apertado e muitas lágrimas escorrendo pelo rosto. Um olho no cinema e outro no meu coração partido e em frangalhos. O roteiro também chamou “Paisagem de Meninos” e virou um filme grandioso e sensível em seus 30 minutos, pelo talento do Fernando Severo.

E foi para Gramado e eu ganhei um Kikito como roteirista. O efeito borboleta. Rs! E ainda uma outra lembrança desses tempos. Esta brejeira, mas tão deliciosa quanto as outras. Porque lembrança, se você prestar bastante atenção, é sempre boa. Porque você sobreviveu pra lembrar e aos sobreviventes, a vida! Eu, na casa do Valêncio, sentado em sua mesa de cozinha, almoçando com ele e sua mulher. Ela tinha feito uma abobrinha recheada com carne moída. Uma das comidas mais deliciosas da minha lembrança. Fecho os olhos e sinto ainda hoje, o gosto daquele prato. E sempre, sempre que me deparo com abobrinha num cardápio de almoço, lembro desse dia na casa do Valêncio.

Era um homem intenso, dominado pela paixão e de ego fortíssimo. Radical, a ele era atribuída a frase “aos meus amigos tudo, aos meus inimigos nada!” Foi um dos criadores da Cinemateca de Curitiba, também por seu amor ao cinema. Então? Então que eu também lembro do dia em que fui fazer a minha Carteirinha da Cinemateca (que tenho até hoje), com fotografia e tudo, e agora, como um relâmpago, me recordo de estar sentado em suas modestas instalações, lá pela década de 70, assistindo em preto e branco, por exemplo, “A Montanha dos Sete Abutres”, do Billy Wilder.

Nascia em mim a maior das paixões: o cinema. E não dá pra dizer, com segurança, que o senhor Valêncio Xavier também tem culpa nesse cartório? Valêncio Xavier, irascível, difícil, quase estrela, um criador de pensamentos. Então que a cultura dos curitibanos passa pelas suas mãos e pela sua inteligência. Seus amigos, talvez, ressaltem essa verdade, seus inimigos vão enterrá-la. Assim é a vida. Assim é ser, viver e morrer em Curitiba.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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