Millôr contra o poste

Às vezes, nós, colunistas, fazemos uma ideia exagerada do nosso poder

Nos anos 80 e 90, quando o Jornal do Brasil tinha enorme peso na imprensa, Millôr Fernandes produzia uma coluna diária na sua página de opinião e, com seu espírito de ferrinho de dentista, infernizava a vida de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, os presidentes do período. Mas, às vezes, Millôr se ocupava também dos assuntos do Rio. De preferência, dos que lhe tocavam mais de perto —leia-se Ipanema, do qual era proeminente cidadão. Em certo momento, Millôr implicou com um poste gigante armado pela prefeitura na pedra do Arpoador para tornar a área mais segura e facilitar a vida dos surfistas que pegavam onda de madrugada.

O poste era da altura de um prédio de quatro andares e sua bateria de lâmpadas dava para iluminar um estádio de futebol. Millôr protestou contra aquele estrupício que, durante o dia, era ainda mais monstruoso e maculava o cartão-postal. Millôr denunciou-o numa crônica incisiva —em vão. Voltou à carga dias depois e, de novo, nada aconteceu. Então, bem ao seu estilo, começou um fuzilamento diário contra o prefeito Marcelo Alencar, a quem chamava de Barcelo, referindo-se à suposta militância etílica do governante.

Em condições normais, Marcelo teria mandado remover ou amenizar o poste, que também não contava com a simpatia da maioria dos ipanemenses. Mas, ou para contrariar Millôr ou porque realmente acreditava na utilidade do poste, deixou-o lá e aguentou os ataques.

E, assim, prosseguiu pelas semanas seguintes a batalha do século: Millôr contra o poste. Placar final da refrega: o poste ganhou. Passaram-se anos. Marcelo e Millôr já morreram, o poste está lá até hoje e, agora, nem parece tão grande.

Tudo isto para dizer que nós, colunistas, às vezes fazemos uma ideia exagerada do nosso poder. Pois poucos foram mais poderosos que Millôr Fernandes —e, um dia, ele perdeu para um poste. 

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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