Não fosse Kurt e era um conto

paulo-leminski-dico-kremer-(1)© Dico Kremer

Difícil associar Paulo Leminski ao Concurso Nacional de Contos promovido pelo Governo do Paraná, por intermédio da Fundepar, em fins da década de 1960. Foi esse o maior prêmio literário e o mais prestigiado concurso que a literatura brasileira conheceu a partir de 1968, quando Dalton Trevisan foi consagrado seu primeiro vencedor, enquanto Curitiba foi oficializada como a capital nacional do conto.

Em outra ponta, o jovem Paulo Leminski, recém-saído do Grupo Áporo, liderava manifestações de um ardor quase comparável às atuais rebeldias contra a Copa do Mundo, isso se o mundo fosse uma grande biblioteca.

Eram faixas denunciando o conto como o “Soneto do século XX” ou ironizando: “Conto só se for a cores”, desfiles interrompendo as palestras que acompanhavam o concurso, entrevistas furiosas, brados de ordem, clamores em defesa da vanguarda.

Bom de mídia, o polaco fez o que pôde para ser preso em nome da literatura. Afinal eram os anos de chumbo, e o conto, oficialmente consagrado, tornava-se uma algema para a literatura.

Sintomático que os protestos leminskianos tenham chegado ao clímax em 1969, durante o II Concurso Nacional de Contos, quando o vencedor foi Rubem Fonseca.

Esgotada a febre de protestos, o fabbro foi para a oficina e daí em diante passou a ser visto circulando pelas ruas e bares com aqueles minúsculos papéis com frases porte-manteau carimbadas com o KTT.

Quase seis anos de alquimia, recortes, desenhos, montagens, anotações, tudo marcado com o indefectível KTT. Três preciosos cadernos de esquemas, mapas e busca de caminhos, entrevistas (originais não encontrados) para, finalmente, anunciar que, no alto do Pico do Marumbi, colocaria o ponto final em sua obra máxima, a mais cara, a mais buscada: Catatau, lançada em 1975, com todo o direito de é pater.

Organizado em sua desorganização, Leminski guardava tudo. Não tivesse ele feito uma convocação, em uma de suas últimas entrevistas, para que eu tratasse de sua obra como havia cuidado daquela dos simbolistas, e não teria saído em busca de seus perdidos do incêndio, pois à sua maneira, a biblioteca de um escritor é sempre um Templo das Musas.

E saí e busquei para encontrar em meio a livros raros e caros, manuscritos, obras inéditas (La vie em close, Metaformose, ambas com proposta de capas, esparsos que a família reuniu, editou e vem divulgando), cartas, recortes, entrevistas, bilhetes, sem contar a marginália, que por si só daria uma tese.

Mas, sem dúvida, o que me seduziu foi o Laboratório de Catatau, ainda inédito, e, em meio a artigos, entrevistas e recortes de jornal, a carta de Léo Gilson Ribeiro, na qualidade de integrante do júri do II Concurso Nacional de Contos do ano de 1969.

Na carta, recebida cerca de três anos após a realização do concurso, a revelação do equívoco. Leminski deixara de ganhar o II Concurso Nacional de Contos (1969) ou Rubem Fonseca fora o vencedor porque o júri confundira Kung (Leminski) com um certo Kurt.

A partir daí ficam interrogações: por que Leminski nunca divulgou essa carta? Por que não guardou o conto (de título ainda desconhecido) que inscrevera no concurso?

Esta última questão procurei responder indo à Biblioteca Pública do Paraná, que ainda guardava em seus depósitos todos os contos inscritos nos concursos da Fundepar, organizados por ano de realização. Eram milhares. Assim passei semanas em busca do texto de Kung e localizei Descartes com lentes (publicado em 1993, iniciando a Coleção Buquinista).

Muito mais do que a gênese de Catatau, um texto que teria mudado o rumo do conto brasileiro tão soneto que era com um choque de “ego-trip” na linguagem, marca da proposta do texto de Leminski.

Lá estava, sob uma árvore folhuda, o Cartésius, o experto em dioptria, com suas lentes e lunetas, observando os bichos no zoo, as formas vegetais e as naus aportadas em Vrijburg.

Lá estava a prosa nada cartesiana, Descartes ignorando Descartes e por que não aberto para “outros em mim que não sei”. Por isso, labirinto, por isso imprevisto para outra viagem, mais longa, aquela de muitos cadernos, de muitos KTTs, aquela da lente invertida que chega no Catatau

O conto do Kurt, o que não estava bêbado, esse talvez certinho como tantos- todos, foi considerado medíocre e assim confundido derrotou Leminski.

Kung-Leminski era Artyshewsky bêbado extravagante, ninguém entenderia. Teriam que esperar.  Que dizer do Catatau? História de uma espera.

Sobre o concurso, sobre o conto, sobre o prêmio, Dalton– sempre impecável a polir seus textos –pôde comprar, entre outras coisas, um prosaico Fusca que o acompanhou por muitos anos. Kung-Leminski trancou-se no laboratório e, em meio a experimentos, transformou-se em Occam, o monstro semiótico que habita as profundezas dos lagos e rios subterrâneos da Curitiba-Mundo, o personagem dessa “leminskiada barrocodélica” que é Catatau.

Cassiana Lícia de Lacerda – Revista Ideias|Agosto 2014|nº 154|Travessa dos Editores

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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