Nêgo Pessoa

© Kraw Penas

Há dias carrego, em silêncio, minha apreensão e minha tristeza. A primeira notícia foi de um quadro clínico delicado, uma grande dificuldade para respirar e uma dor de dente. Ao telefone, reclamava mais da dor do que da falta de ar. Providências. Tina Camargo o levou ao médico e ao dentista. A dor passou, a dificuldade para respirar aumentou e o médico diagnosticou uma pneumonia. Novo médico, tomografia, exames acurados e veio o primeiro sinal do pior. Um pulmão não funcionava, o outro só a metade. Internamento. Da pneumonia passou-se à pesquisa. Novas tomografias, internamento para uma cirurgia. Tirar água do pulmão, disse o médico. Retiraram a água e tecido para biópsia. Então, se deu o que passáramos a temer. A neoplasia tomara conta do pulmão e avançava. Internamento imediato na UTI. Durante dias a luta para restabelecer equilíbrio mínimo do organismo. Sedado. Coma induzido.

Lembrei do Jamil. O mesmo hospital, a mesma UTI, o mesmo bicho no mesmo lugar. Veio-me o mau pressentimento. Tudo que ouvi sobre a dificuldade que é combater a doença no pulmão. Mas o Turco teve um tempo de lucidez para lutar. Quimioterapia, radioterapia, o esforço diário para destruir o bicho. Quero apenas cinco anos, dizia, só cinco anos para terminar o romance. Tenho alguns contos na cabeça. Se tiver cinco anos com um mínimo de saúde eu termino, acreditava. Não teve cinco anos, apenas alguns meses em que reeditou O Jardim, a Tempestade. Deu uma longa entrevista confessional para a revista ETC e escreveu um conto antológico Minha mãe se veste para morrer. Só. O romance da vida de Antonio Vieira dos Santos ficou e seus originais se perderam em mãos inúteis. Foi-se o Turco.

Que esperança eu poderia ter agora, com o Nêgo Pessôa levado direto à UTI, sem tempo para nada, sem poder dizer nada. Entubado. Sem reações. Uma traqueostomia para ajudar a ventilar o pouco que lhe restara dos pulmões. A cada notícia, a esperança menor. Quanto tempo? Ele também tinha um livro rascunhado em algumas páginas de suas cadernetas e em cinco livros escritos em sua cabeça. As lembranças narradas na ordem dos afetos. Dos amores. No fio da navalha dos vícios e dos prazeres. Mas principalmente a memória dos livros. Das leituras. Uma biblioteca de milhares de volumes na cabeça. Uma população de personagens da grande literatura. Ele mesmo, personagem de Dalton Trevisan, Pássaro de Cinco Asas. A vida a escorrer da experiência que se confundia nas páginas e nos sentimentos. Nêgo Pessôa, no centro de todas as teorias, de todos os livros, pronto para todas as mulheres do mundo.

Lembrei de suas divagações sobre Garcia Marques e o barroco latino-americano em tertúlia literária com o então presidente José Sarney, enquanto o país afundava em crise de inflação estratosférica, o ministério inteiro na porta da biblioteca do Palácio Alvorada, aflito, a esperar que terminasse a conversa para tratar de um novo plano para salvar a economia do país. Nossa temporada no Paraguai, meses de campanha para eleger presidentes, madrugadas intermináveis no bar do Hotel Guarany ou nas boates pobres de cantoras gordas, suadas, a entoar dramáticos boleros. Muito uísque falsificado, uma discussão com uma prostituta argentina sobre a aversão de Borges pelo tango, e pó, muito pó, digressões sobre o fumo paraguaio, a visita de amigos, Coski, Tataio, Sabino, porres e a ressaca em reuniões com o futuro presidente e seu estafe, todos circunspectos, a aguardar uma formulação que fingíamos ter e não tínhamos, criávamos na hora.

Incrível é que entre uma noitada e outra, naquele calor insuportável, ele tivesse disposição para ler Proust. Não lembro de uma única vez que o tivesse encontrado sem um livro, ou a falar sobre o livro que estava a ler. A quem ele poderia dizer sobre suas leituras e mais sobre o cinema, outra paixão, considerada vocação nos primeiros anos. Restou um documentário perdido sobre a cidade, Curitiba Hoje, pensado e filmado cheio de referências e citações dos mestres. Um fotógrafo italiano que se dizia assistente de direção de Rossellini. E não era Rossellini seu maior gosto, era Fellini, foi Bergman, foi John Ford, foi Glauber, foi Godard e foi Visconti e Kurosawa e todos os que vimos dezenas de vezes. Foi quando o conheci, início dos anos 60, no Centro Experimental de Cinema, quando ainda acreditávamos que a arte mudaria o mundo, traria a liberdade e nos daria a contemporaneidade do mundo.

O cinema ficou no passado. Nem a arte, nem a política, todas as tentativas foram fracassadas. Eu mudei-me para o interior na barra pesada dos desesperados que já não acreditavam em luta pacífica. Só nos vimos quando voltei da prisão. Nessa época ele estava a escrever em jornais sobre outro assunto, tão díspar, que dominava sua inteligência: o futebol. Mais que o futebol, o Fluminense, a paixão mais duradoura, que sobreviveu a tudo. Seu texto era invejável e acredito que é o melhor que tivemos em nossa aldeia. O futebol era o tema que o ligava ao cotidiano real de uma gente que não estava interessada em Jean Paul Sartre, Freud, ou às variáveis dos marxismos que discutíamos nos círculos ínfimos de interessados.

Escreveu muito sobre o jogo e acho que foi um desperdício para tanto conhecimento, tanta literatura, tanta arte, tanta filosofia. Tanto ele tinha a dizer, dono de uma linguagem rica, em texto enxuto, nenhuma palavra a mais, para descrever jogadas, táticas e estratégias para a Seleção que não cumpriu os vaticínios e sempre o contrariou. Venceu quando ele apostava na derrota, em 1970; perdeu quando considerava a vitória certa, em 1982. Mas vaticínios e análises eram o que menos interessava no texto do Nêgo Pessôa. O bom mesmo era ler o texto, fruir as suas frases, as suas palavras. E o seu raciocínio inteligente, mesmo quando usado para as batalhas mais extravagantes, como a defesa da tese de que o técnico de futebol além de desnecessário, atrapalha. Nêgo Pessôa discutia sobre tudo, das teorias do Círculo de Viena às técnicas do amor tântrico e outras de sua própria invenção, como a técnica dos quadris que ele descreveu em um de seus textos.

Foi um amigo de casa, que passava o natal e o ano-novo com minha família e nossos amigos mais chegados. Denise e meus filhos, Izabel e Rubens, herdaram sua amizade. Em casa convivemos com pessoas únicas, em noitadas alegres com Dico Kremer, Carmen Lúcia, Osvaldo Loureiro, Plinio Marcos, Fernando Sabino, Elizabeth, Jamil Snege, Newton Rodrigues, Wilson Bueno, Aroldo Murá, Iara e Luís Roberto Soares e toda a raça pensante de nossa geração que aqui viveu ou por aqui passou. Pessôa foi mais que um conviva, foi dos poucos confidentes em minhas noites escuras da alma. Tínhamos, cada qual, seu próprio universo, e nem sempre a conjunção dos astros. Acordo tácito, não falávamos sobre amigos do outro que não gostássemos.

Divergíamos. Muito e sobre todas as coisas. Principalmente sobre a vida e as pessoas que nos cercavam. Sobre ideias e sentimentos. Sobre paixões conflitantes. A idade e as abstinências o tornaram irritadiço, com pouca paciência para aceitar os fatos, mazelas que também me alcançaram. E havia o hábito da provocação. Pessôa se esmerava ao dizer o que sabia que levaria o interlocutor à exasperação. Defendia com ardor teses que conflitavam com suas convicções para desafiar o próximo. Liberal, libertário, era capaz de fazer longas perorações em defesa dos governos militares para provocar a ira de desafetos de ocasião. Convergíamos. Muito e sobre muitas coisas. Aliás, sobre quase tudo, especialmente quando estávamos em batalha comum contra apedeutas nativos, o que foi uma constância em nossas vidas.

Precisávamos do embate. Nêgo Pessôa era um polemista que adorava paradoxos. Insultava com charme e precisão. É verdade que às vezes descia ao chulo, ao argumento bruto. E se não contido seria capaz de ir ao desforço físico para defender uma ideia, um autor, uma princesa. Não escondia suas idiossincrasias. Gostava muito do Paulo Leminski, mas detestava a sua poesia. Não escondia isso de ninguém, nem do Leminski, o que provocava maus bofes na província orgulhosa de seu vate modernista. Não gostava da província, do espírito provinciano, principalmente depois que ocupada pela geração do politicamente correto e suas sandices. Mas jamais conseguiu se desligar da cidade que adotou quando veio de Irati para estudar o colegial. Nem quando foi levado ao Rio para compor a equipe do Armando Nogueira no início do Jornal nacional. Tomou um ônibus, fugiu do compromisso e voltou à Curitiba. Para continuar a discutir na Boca Maldita e publicar aqui os seus livros: “Modos e Modas”, “De Letra”, “O Sábio de Chuteiras”, “O Velho e Rude Esporte Bretão”, “O Livro Vermelho do Nêgo Pessôa” e outros.

Sem contar as promessas que talvez ainda se cumpram, se em estado de obra adormecida em uma de suas gavetas. Espero que sim e que não se repita o que aconteceu com o Turco. Será uma forma de continuar a convivência nem sempre amena que tive com ele, mas intensamente rica e gratificante. Com certeza, o mais longo relacionamento de amizade que tivemos em nossas vidas. Com ele se descola muito de minha existência, eu que começo a sentir a falta dos contemporâneos perco a última pessoa com quem poderia falar sobre temas que só os que conviveram podem entender. Com o entendimento e a cumplicidade impossível com gente de outro tempo, especialmente deste em que a espécie parece recuar sobre seus próprios passos para o fundo das cavernas.

Fábio Campana

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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