Nós que nos amávamos tanto

Quase todos meus relacionamentos amorosos acabam primeiro nos sonhos. Picasso desmontava suas mulheres em cubos. Eu as vejo vagando no plano onírico, já distantes de mim, de malinha na mão, como quem está partindo e não vai voltar mais. Elas não estão nem feias nem bonitas, apenas mais reais, menos metafísicas. A verdade é que fico sabendo tão logo as enquadro: terminou. Algumas estão alegres, a maioria exibe um sorriso triste – um sabor agridoce perpassa o quadro. Tenho certeza de que se trata de um adeus. E sem volta. Mas no fundo já não importa. Aí está a parte dolorosa: não importa mais.

Eu me apaixonei por aquela mulher, ela dormiu nos meus braços, escrevi poesias para ela, prometi que plantaria um jardim de rosas em sua homenagem. Para algumas jurei que as levaria a um lugar a que só eu, um iniciado, tenho acesso: uma fenda do tempo, o Portal de Ender, onde nascem os unicórnios. Agora vejo que elas me olham lá de longe, já de saída, como quem diz, Até mais, valeu, a gente se vê. Não há dúvida: é um adeus. E não importa mais.

Esta madrugada fui dormir tarde, os galos já cantando, estrelas se apagando no céu. Quando peguei no sono, Charlie Parker veio me visitar. Não foi a primeira vez, fico encantado sempre que ocorre. Todas as vezes peço que dê uma canja e toque minha favorita, “Sly Mongoose”, em seu sax alto. Bird reconhece numa pilha de discos de vinil seu grande disco “Diz’n’Bird at Carnegie Hall”, um álbum histórico, lindo, gravado ao vivo em setembro de 1947. O co-star é o pai do Bebop, o trompetista de alta euforia criativa Dizzie Gillespie.

Foi presente da minha amiga Avital Rachel Glassberg poucos meses antes de ela morrer em Nova Iorque, bem no dia do seu aniversário, 25 de dezembro de 2002. O LP tem o autógrafo original de Bird. E uma dedicatória de Avi: “Para meu passarinho”. No sonho, o próprio Parker põe o disco na radiola. “Groovin High” começa a rodar. Eis que surge na sala uma namorada de três décadas atrás. Ela congelou no tempo, conserva o mesmo cabelo louro jogado nas costas, não há ali uma ruga, parece que o relógio parou. Começamos a dançar. O disco muda e entra em fundo, quase como trilha sonora, uma das minhas canções favoritas, na voz da minha intérprete favorita. “Someone To Watch Over Me”, com lady Sarah Vaughan.

Imagino que o sonho, de novo, anunciará uma despedida, mais um fim de caso no currículo de um namorador. Mas olho-a nos olhos e não reconheço aquela falta de brilho, aquele fim de festa, das outras despedidas. Há doçura neles. Ela cola seu rosto no meu e nossos corações disparam. Percebo então que o sonho, pela primeira vez, anuncia uma paixão que não acabou. Nunca antes nos olhamos daquela maneira. Jamais trocamos beijo tão suave. “I’m a little lamb who’s lost in the woods” – diz a canção.

Acordo e, amarrado no tempo irreversível, descubro que sublimei a existência daquela mulher por 30 anos da minha vida.

1950-2021

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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