O bufão

Talvez a gente precise tratar o presidente como as crianças trataram o Binho

Escancaravam as janelas, abriam a porta e pediam socorro, subiam nas cadeiras para aumentar a velocidade do ventilador.

A professora de geografia, que estava grávida, passou mal e vomitou em seu lixinho, embaixo da mesa. Esse foi o único momento em que ficamos em silêncio, preocupados. Ela chorou na porta da sala, reclamando para o diretor que a acudia: “Não vem dizer que é coisa de criança! Isso é coisa do demônio!”. De fato, não dava para falar de “pureza infantil” naquela atmosfera. 

Qualquer aula que começasse, a gente já se olhava querendo rir. Em que momento vão soltar a bomba? Qual vai ser a reação do professor? Antes de o tédio se instalar, torcíamos para que começasse a bufonaria.

Para que estudar verbos, ângulos e santos se a gente podia ficar horas se perguntando de quem eram aqueles peidos inclementes?

O professor de biologia quis ignorar, mas, quando percebeu que “eles” seriam sequenciais e evolutivamente abomináveis, tacou o livro no chão, disse que não era pago para aquilo.

Meu Deus, como a gente gargalhou nesse dia. Era horrível porque nos faltava o ar e, então, tínhamos que respirar fundo.

A professora de literatura, tentando mostrar superioridade, dizia preferir “isso” ao odor dos chicletes de melancia, que lhe atacavam o fígado e a labirintite.

A Miriam, uma menina delicada e cheia de pulseiras com água e glitter, gritava “chegaaa”, protegendo os ouvidos.

Os meninos riam dela: “É o nariz que você deve tapar, besta”. No recreio, paramos de trocar papéis de carta perfumados e de fazer listas dos meninos mais bonitos.

A hora de descanso era toda ocupada pela questão que não podia calar: quem estava soltando aqueles peidos mortíferos? Quem?

Primeiro, porque éramos crianças da década de 1990 (más, preconceituosas e sem o PSOL e textões de Facebook para nos dar sincerões), apontávamos os gordinhos.

Depois, começamos a desconfiar dos repetentes. Teve reunião de professores, conversa com os alunos e, por fim, chamaram os pais.

Nos ameaçavam com provas surpresas (que só pioravam a flatulência) e expulsões. A situação tinha literalmente vazado para outras salas, outros anos e andares.

O autor dos peidos, ainda que misterioso, era mais conhecido e importante que o padre morto, fundador da grife escolar.

Daí o Binho, um garoto bem magrinho e metido, ficou doente e faltou uma semana. E a fedentina desapareceu. Voltamos a trocar papéis de carta perfumados e a sonhar com namorados mais velhos —de 15 anos.

Nos corredores, comentávamos com ar de detetives: “Sabia que nos intervalos ele misturava Ebicen de camarão com Glico de frango?!”. O cara era um profissional da zombaria, um extremista intestinal, um anarquista anal.

Binho voltou recuperado de sua amigdalite em uma quarta-feira chuvosa. Os puns, por causa dos antibióticos, pareciam agora radioativos. Sorte da professora grávida ter saído de licença.

Mas, porque já estávamos cansados e mais maduros (sim, aqueles cinco dias sem Binho nos envelheceram e nos mostraram —ou nos recordaram— a beleza de outros assuntos e interesses), continuamos a copiar a matéria em silêncio, sem acusar ultraje.

O professor não se irritou, ninguém nem abriu a janela. Binho, pela primeira vez, sem graça ou lugar de destaque em nosso inconformismo barulhento, teve que cheirar, sozinho e até o fim, toda sua podridão. 

Talvez a gente precise tratar nosso presidente como as crianças daquela quinta série trataram o Binho.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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