O centenário de um gênio

Não tivesse falecido em 2005, o grande mestre Will Eisner estaria festejando cem anos neste 2017. Ele foi um dos maiores nomes do mundo dos quadrinhos, genial, extraordinário na criatividade dos argumentos e no manuseio da pena e do pincel. Na verdade, Will enriqueceu a trama narrativa e trouxe para os gibis inovações gráficas. Mais do que isso: tirou as historietas daquele marasmo “pictórico” inicial e deu vida real aos heróis de papel. Mais ainda: introduziu nos comics o humor, a ironia, a linguagem cinematográfica e os diversos planos, incluindo o close e o super-close up – como assinalou Jô Soares, admirador de carteirinha de Will Eisner

Seu grande personagem – The Spirit – nasceu em 1940, deixou de ser produzido em 1952, mas tornou-se eterno, conquistando gerações de admiradores no mundo todo. Tido como morto, o detetive Denny Colt, vestia um terno azul, usava chapéu e luvas, tinha uma bela gravata vermelha, ocultava-se por trás de uma máscara em torno dos olhos e morava em um cemitério. Sim, no Cemitério Wildwood, de onde partia para combater secretamente o crime em Central City. Era solteiro, mas estava sempre cercado de belas mulheres fatais. A sua verdadeira identidade jamais foi revelada, a não ser para uma reduzida corte integrada pelo inseparável amigo Ébano, pelo comissário-de-polícia Dolan e pela filha deste, a louríssima Ellen, que Denny namorava à moda antiga.

– Como todas as boas ideias já tinham sido usadas – relatou Eisner -, Colt teve que se virar como pôde. Sem superpoderes e sem superuniforme capaz de lhe dar vantagem sobre as forças do mal, ele tinha que combater o crime correndo o risco de se arrebentar. Afinal, era de carne e osso como qualquer humano.

As histórias de Spirit eram a prova da genialidade de seu criador. Curtas, bem estruturadas e com uma pitada de bom humor, destacavam, como expressou Waldomiro Vergueiro, no blog Omelete,“a fragilidade do ser humano na luta pela sobrevivência frente a situações adversas e enfatizavam, muitas vezes, a ironia da própria existência”. Aliás, as historietas traziam outra novidade inventada pelo autor: o logotipo do personagem nunca foi repetido. A cada aventura ganhava de Will nova forma gráfica.

E assim, por doze anos, o misterioso justiceiro esteve presente nas tiras dos jornais e em revistas do mercado norte-americano – foram mais de 600 aventuras, interrompidas, ao que consta, porque Eisner se sentiu cansado das exigências que o quadrinho comercial lhe colocavam.

Em seguida, as histórias de Spirit foram reeditadas em várias séries de quadrinhos por diversas editoras. A principal das quais, a Kitchien Sink Press, que republicou toda a série, pré e pós-guerra, sob o título de “The Spirit: The Origin Years”. Posteriormente, a Kitchen lançou “The Spirit: The New Adventures”, com histórias escritas e ilustradas por uma variedade de criadores, entre os quais Alan Moore, Eddie Campbell e Dave Gibbons.

O Brasil – pelo qual Will Eisner tinha especial carinho – foi o primeiro país, fora os EUA, a publicar The Spirit, a partir de 1941, um ano após a sua estreia. A informação foi dada ao jornal Folha de S.Paulo pelo britânico Paul Gravett. O lançamento ocorreu na revista O Gibi, de Roberto Marinho. Era, então, O Espírito. Ao mercado europeu o personagem só chegou em 1967.

Depois de Spirit, Will Eisner dedicou-se por inteiro às “novelas gráficas”, termo por ele cunhado para indicar a nova linguagem gráfica sequencial. E aí seguiu-se uma série de obras-primas, como “Um Contrato com Deus”, “O Edifício”, “A Força da Vida”, “No Coração da Tempestade”, “Avenida Dropsie”, “Narrativas Gráficas”, “New York – A Grande Cidade”, “Assunto de Família”, “Fagin, o Judeu” e “O Nome do Jogo”.

A explicação foi oferecida por ele próprio: “Eu estava conversando ao telefone com um editor, e disse a ele: ‘Eu tenho uma coisa nova para você, uma coisa muito nova’. Ele indagou: ‘O que é?’ E eu olhei para ela e me dei conta de que, se eu falasse uma história em quadrinhos, ele desligaria. Era um sujeito muito ocupado, e aquela era uma editora de alto nível. Por isso, eu a chamei de romance gráfico (graphic novel), e ele disse: ‘Oh, isto é interessante. Traga aqui!’ Eu levei. Ele olhou para ela, olhou para mim por cima de seus óculos de leitura, e disse: ‘Você sabe, ainda é uma história em quadrinhos’ ”.

Aquele editor não a quis, mas outros quiseram. E o mundo dos quadrinhos e da arte gráfica agradecem penhoradamente.

O quadrinhólogo brasileiro Álvaro de Moya, recentemente falecido, foi amigo pessoal de Will Eisner. Quando enviou-lhe uma edição de “Anos 50/50 Anos”, recebeu o agradecimento do grande mestre: “Os quadrinhos, a narrativa visual, com o emprego da arte sequencial e texto, estão afinal no limiar de chegarem ao lugar merecido na cultura ocidental. Este livro de sua autoria, que é um reconhecido historiador, muito fará para acelerar esse processo”.

As lembranças dessa amizade, que também durou quase 50 anos, estão em “Eisner / Moya – Memórias de Dois Grandes Nomes da Arte Sequencial”, livro organizado pelo jornalista Dario Chaves e lançado este ano pela Editora Criativo. O volume traz histórias narradas por Moya, em primeira pessoa, que remontam a 1951, quando ele fez o primeiro contato com Eisner, pedindo originais do artista para a Primeira Exposição Internacional de Quadrinhos, que foi realizada em São Paulo, naquele ano.

William Erwin Eisner nasceu no Brooklyn, Nova York, em 6 de março de 1917 e faleceu em 3 de janeiro de 2005, em Lauderdale Lakes, Flórida.

Célio Heitor Guimarães

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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