O disco perfeito

‘Nana Caymmi canta Tito Madi’ é uma homenagem à nossa sensibilidade

Outro dia, alguém da área da música me falou do seu sonho de produzir o disco perfeito. Como seria? Ele deveria ter o intérprete perfeito, o repertório perfeito, os arranjos perfeitos, o acompanhamento perfeito, as condições técnicas perfeitas. No nosso rico passado musical, isto não costumava ser problema, e muitos discos assim foram feitos. Não mais. As gravadoras, filiais das multinacionais e cada vez mais inimigas da música brasileira, passaram a impor custos, prazos e condições impossíveis. Hoje, exceto o sertanejo e o funk, nenhum grande nome —nenhum— grava mais quando quer.

Por sorte, para os projetos comercialmente modestos, restam os últimos heróis do ramo: os produtores independentes. Pois um deles, José Milton, já de longa folha de serviços à música, acaba de realizar a façanha do disco perfeito.

Chama-se “Nana Caymmi Canta Tito Madi”. Como aconteceu? Por amor. José Milton, Nana, o pianista Cristovão Bastos e o violonista Dori Caymmi escolheram 11 canções do mestre do samba-canção. Um estúdio do Rio, a Cia. dos Técnicos, abriu-lhes as portas e, lá, eles gravaram cantora, piano, violão, contrabaixo e bateria —todos juntos, em apenas três dias, como sói aos profissionais. O resultado foi mostrado a Kati Almeida Braga, diretora da Biscoito Fino, que se encantou e tornou possível o resto da empreitada: vestir os arranjos com os sopros e cordas, pagar todo mundo e soltar o produto. Resultou em um dos maiores discos brasileiros em muitos anos.

Durante 40 minutos, o ouvinte é exposto a excelências que há muito julgava extintas: o requinte e precisão de uma voz, a beleza e ternura de tantas letras e melodias, e a insuperável sensação de que, ao gravar, aquelas pessoas estavam acreditando em nós, na nossa sensibilidade. 

Tito Madi morreu em setembro último, mas ainda a tempo de escutar o disco. Agora, também temos esse privilégio.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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