O homem de muitas caras – parte 2

Se você ainda se lembra da parte um, sabe que ela terminou com a descrição do Graham Greene feita por Kenneth Tynan. Para ver como o Greene tinha mesmo muitas caras, segue a descrição dele, feita por Victor Pange, na mesma época: “No físico, esse homem de 48 anos (02/10/1904) é de altura levemente superior à média. Seu andar esportivo acentua-se mais pelas roupas de riscados de que parece gostar. Tem cabelos louros, feições finas e regulares, olhos dum azul acinzentados que se fixam no interlocutor com um olhar vago, mascarando curiosa misturada de submissão, de reserva ou talvez timidez. É o rosto de um homem que sofreu. A acolhida amável e familiar põe o visitante à vontade. Greene senta numa cadeira baixa, com as pernas dobradas, a atenção sempre presente. Destaca-se dessa personalidade aquilo que dele se espera: a franqueza e a retidão duma alma que procura a verdade na angústia”.

Greene viveu em guerra. Contra si mesmo, contra Deus, contra as artimanhas da literatura. E viveu em meio a guerras na África, na Indochina, na Europa. Vivia em trânsito. Sentiu na pele a derrota dos franceses no Vietnam, a destruição de Londres e as guerras intestinas dos africanos. Explosões, pessoas destroçadas, cidades arrasadas e lutas sangrentas e sem sentido. Para aguentar, fisicamente, tudo isso, ele descobriu o ópio. E para aguentar espiritualmente, agarrou-se à religião católica. E para aguentar intelectualmente, agarrou-se à literatura. Aqui, é isso que interessa.

“Grande parte da criação dum romance se realiza no inconsciente: nessas profundezas, a derradeira palavra está escrita antes que apareça no papel. Lembramo-nos dos pormenores de nossa história, não os inventamos”.

Por isso, lutando, viajando, passando por enormes dificuldades, Greene nos dá pistas muito boas para seguir o caminho da palavra escrita.

“No fato de escrever, muitas coisas dependem da superficialidade dos nossos dias. Pode-se estar preocupado com compras a fazer, impostos a pagar, conversações fortuitas, mas o rio do inconsciente continua a correr livremente, resolve problemas, traça planos. A gente senta diante da escrivaninha, desencorajado, com o cérebro estéril e, bruscamente, as palavras chegam, as situações que parecem petrificadas no fundo dum beco sem saída evoluem por si mesmas; o trabalho se fez enquanto se dormia, se andava pelas lojas ou se tagarelava com amigos”.

O incrível é que, ainda hoje, passados tantos séculos do mundo e tantos milhões de escritores, a faina ainda seja a mesma. Vida e obra se confundem, se interpenetram, se amoldam. E, para quem vê de fora, a vida de um escritor continua sem razão, sem sentido, sem direção. A feitura de um livro parece não ter validade econômica e nem serventia imediata. Esbarra-se em dúvidas, falta de incentivo e apoio. Mas um livro não é um míssil teleguiado, é uma bomba de tempo sem marcador fixo. Pode explodir a qualquer momento ou falhar como bombinha de São João.

Greene narra assim a sua primeira experiência com edição de livro: “Oito meses transcorreram sem resposta de Hienemann, e acabei escrevendo para lembrar-lhe meu original. Tinha certeza de que nada adiantaria, e não fiquei surpreso quando recebi logo depois um volumoso pacote. O diretor-gerente Charles Ewans escreveu pessoalmente, desculpando-se pela demora. Existiram opiniões contraditórias, de modo que resolvera ler ele mesmo o romance, mas agora, apesar do interesse, lamentava muito…”

Apesar de tudo, contra tudo e todos, Greene continuou escrevendo. E hoje seus livros estão aí, para deleite de quem quiser. Eu mesmo, que tarde os descobri, estou aproveitando o que posso.

Rui Werneck de Capistrano ainda espera a resposta.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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