O homem que entrevistou Dalton e outras histórias do Araken – II

Uma das ideias mais geniais de Araken Távora foi o Projeto Encontro Marcado, título do mais famoso livro do Fernando Sabino, inteiramente bancado pela IBM, que era a maior empresa de computadores do mundo. O Projeto era maravilhoso: o Araken gravava um vídeo com um grande escritor brasileiro, no qual o mesmo contava, basicamente, a sua vida e a razão pela qual se tornou escritor. O vídeo e o escritor eram levados para as faculdades de todo o Brasil e os auditórios lotavam de estudantes ávidos por conhecer o melhor da literatura brasileira ao vivo. Depois de exibido o vídeo, para o escritor não ter que repetir a história toda em cada lugar, entrava em cena o escriba que respondia perguntas formuladas livremente pelos estudantes. Aqui em Curitiba, o Araken fazia o Encontro Marcado na PUC. O auditório, que ainda não tinha o nome da educadora católica Maria Montessori, botava gente pelo ladrão.

Fiquei amigo do Araken com 5 minutos de conversa e acompanhei, in loco, todos os Encontros Marcados em Curitiba. A estreia foi, claro, com o Fernando Sabino. Araken era velho chapa do Sabino e tinha por ele um amor filial.

Doutra feita, veio o Rubem Braga. Araken e os escritores sempre se hospedavam num hotel que existe até hoje na Amintas de Barros, na frente do Pequeno Auditório do Teatro Guaíra. O hotel já mudou tantas vezes de nome que nem lembro qual era o da época. Araken era amigo do gerente e sempre descolava um desconto generoso nas diárias, que usava para emborcar o mais legítimo escocês. Bebi muito às custas da IBM. O hotel mantinha o restaurante aberto 24 horas. A rotina era sempre a mesma: acordavam cedo (o Araken podia ir dormir às 4 da manhã, mas às 5 já estava de pé, esperando os garçons servirem o café da manhã). Fazia a prima colazinone com os escritores e, depois, atravessavam a Praça Santos Andrade e tomavam a Rua XV. Iam até o Café da Boca, onde muitas vezes os transeuntes reconheciam os escritores e compravam seus livros na Livraria Curitiba, que era vizinhas de porta. Autografavam ali mesmo, de pé, enquanto tomavam café. Depois, iam até o “Nicolau”, onde o Wilson Bueno os aproveitava para entrevistas ou para que escrevessem um texto inédito. Quando descobri que o Rubem Braga ia dar uma entrevista, corri pra redação do “Nicolau”. Não perderia por nada deste mundo uma entrevista ao vivo com o Rubem Braga, a quem reputo o maior e melhor cronista que o Brasil já teve.

Braga estava furibundo. Na época escrevia para a Veja e jamais haviam mexido nos seus textos. Justo naquela semana, o Rubem comprou a revista na Boca Maldita e descobriu que algum fdp da redação resolvera reescrever o texto. Quando me viu, indagou se eu poderia mandar um telegrama em nome dele. Disse que sim, é claro. Jamais negaria um pedido do Rubem Braga. Ele pegou uma lauda do “Nicolau”, sentou-se de frente pra Olivetti e datilografou com incrível rapidez. Entregou o escrito e eu fui correndo levar para o setor competente. No caminho, li o telegrama: “José Roberto Guzzo. Diretor redação Veja. Copidescaram velho Braga. Jamais aconteceu. Peço demissão. Irrevogável. Rubem Braga”. Depois Rubem Braga, durante a entrevista, descontraiu e deu, literalmente, um show. Almoçamos todos juntos. Depois, eles foram pro hotel e às 19 em ponto estávamos todos na PUC.

Realizado o Encontro Marcado com o Rubem Braga, voltamos pro hotel aí pelas 22:30h e sentamos no restaurante.

O Araken era casado com Hermínia, que na verdade deveria se chamar Amélia (Mário Lago/Ataulfo Alves), mas tinha uma namorada em cada cidade do Brasil em que aportava. Aqui, era uma linda mulher, entrada nos quarenta, cabelos pretos, olhos verdes, lábios carnudos. Um tesão. Sentamos os quatro no restaurante do hotel e lá pela meia noite o Rubem Braga disse que não estava se sentido muito bem, um pouco de dor de estômago e subiu pro apartamento.

Não tinha dado uma da manhã quando o garçom chegou na nossa mesa e disse: “Seu Araken, o senhor Braga sente muitas dores e pede a sua presença”. Subimos todos ao apartamento. Rubem Braga rolava de dor na cama e tinha o abdômen muito inchado. O gerente da noite veio. O Araken perguntou se havia algum médico hospedado no hotel. Foram procurar e acharam um hóspede. O médico foi ao apartamento e começou a examinar a barriga do Rubem Braga. Disse que também era capixaba. Nisso, Rubem Braga indaga pela especialidade do doutor. Ele respondeu que era legista. Braga deu um salto da cama e, com o dedo em riste, disse: “O senhor ponha-se pra fora. Ainda não morri. Rapa!”. O médico, com autoridade, mandou o conterrâneo deitar e continuou o diagnóstico. Terminado, disse: “Não passa de excesso de uísque. Vou receitar um Plasil e um Buscopan e de manhã ele acorda bem”. O gerente do hotel mandou um mensageiro até à Farmácia Colombo, que ficava na XV com a Muricy, a única que permanecia aberta de madrugada na época, e comprou os remédios. No outro dia, antes de ir trabalhar, passei no hotel. Rubem Braga tomava café da manhã e estava bem.

O Encontro Marcado era um sucesso e inúmeros escritores queriam participar. Araken Távora arrancou mais patrocínio da IBM e passou a trazer duplas. Certa vez, vieram Antônio Callado e Fernando Gabeira. A mesma rotina de sempre, Boca Maldita, “Nicolau” e uma visita ao Secretário. Callado era um Lord Inglês ou um Chevallier francês. Como falava, desde menino, o legítimo idioma de Shakespeare, ainda jovem jornalista foi contratado pela BBC para escrever, dirigir, editar e narrar a transmissão diária em língua portuguesa. Mudou-se para Londres em plena 2ª Guerra. Narrou para o Brasil, ao vivo, os bombardeios nazistas. Com a libertação de Paris, mudou-se e foi trabalhar na Radiofusão de France. Elegante, sempre trajava ternos azul-marinho (prestem atenção à cor do terno).

Cumprida a rotina de praxe, o Araken me puxou para o canto e disse: “O Gabeira vai almoçar no RU da Federal com os estudantes do PT. O Callado cismou que quer almoçar em Santa Felicidade, mas não pode ser no Madalosso que ele já conhece!” Eu disse: tudo certo. Vamos no Veneza. Chegamos no restaurante os três e começamos a conversar sobre literatura. Eu era fã do Callado desde que havia lido Quarup. Lá pelas tantas, o Araken se virou pro Callado e disse: “Antônio, posso contar pro Paulo a nossa aventura em Brasília?”. Callado abriu um sorriso e respondeu: “Claro!”. A história eu conto amanhã.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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