‘O mez da grippe’: livro fora de catálogo há 22 anos vira hit na pandemia, é disputado por colecionadores e ganhará nova edição

Obra experimental do paulistano Valêncio Xavier (1933-2008) está esgotada nos sebos brasileiros

Tesouro esquecido da literatura nacional, “O mez da grippe” saiu enfim do esconderijo. Lançado em 1981, o pequeno experimento do paulistano Valêncio Xavier (1933-2008) é um dos livros de cabeceira do escritor e ilustrador Lourenço Mutarelli, uma das grandes influências do jornalista Ivan Mizanzuk (do podcast “Caso Evandro”) e uma referência de escrita pós-moderna para autores como Joca Terron e Veronica Stigger, além de ter gerado muitos trabalhos acadêmicos.

Composta a partir da colagem de elementos reais da gripe espanhola na cidade de Curitiba em 1918 (recortes de jornal, anúncios publicitários, letras de música, depoimentos de sobreviventes…), a obra andava esquecida, limitada a iniciados. Mas veio a Covid-19 e, junto com ela, a busca por informações sobre epidemias do passado. Assim como “A peste”, de Albert Camus (que virou best-seller mundial), “O mez da grippe” é agora um hit nos sebos on-line. Entre março e maio, os exemplares chegaram ao preço de R$ 300 na internet — e se esgotaram.

Diferentemente do romance de Camus, “O mez da grippe” está há 22 anos fora de catálogo, o que fez dele um inesperado objeto de colecionador. Algo que mudará em breve: a editora paranaense Arte e Letra prepara uma nova edição que deve sair já no mês que vem.

— Como há um tempo o livro vinha ficando mais raro e mais caro nos sebos, estava um tanto esquecido — diz Thiago Tizzot, um dos sócios da Arte e Letra. — O contexto atual atrai atenção para a obra, a Gripe Espanhola é uma das maiores referências para o que vivemos agora. Mas a verdade é que foi uma coincidência: estávamos negociando o relançamento desde o ano passado.

Colcha de retalhos reais

“O mez da grippe” trabalha com fragmentos de realidade do tempo da gripe espanhola, uma espécie mashup pioneiro. Curiosamente, alguns documentos da época parecem ter sido publicados nesta semana, como a reportagem que denuncia “um interesse das autoridades sanitárias de ocultar a verdadeira situação”. Ou ainda o depoimento (que pode ser real ou não) de uma suposta sobrevivente dizendo que o governo escondeu o número de mortos “para não alarmar”.

— Como toda literatura, o livro se tornou assustadoramente real — diz a escritora Veronica Stigger, que usou “O mez da grippe” em uma oficina literária um pouco antes do surto do novo coronavírus chegar ao Brasil, quanto outros países já viviam a quarentena. — Embora o livro seja construído por meio de elementos da realidade, era como se o percebêssemos como algo irreal, como um passado cimentado. Ainda era inimaginável fechar cinemas ou, muito pior, não ter mais lugar onde enterrar os mortos.

O crítico e professor Victor da Rosa é um dos que buscaram “O mez da grippe” nos sebos on-line durante a pandemia — ele já havia lido a obra pela primeira vez há alguns anos. No começo da busca, em março, encontrou cerca de 40 exemplares à venda por um preço relativamente normal para títulos fora de catálogo, entre R$ 50 e R$ 60. Quando olhou em abril, achou apenas dois por R$ 300. Desde maio, o livro não está mais disponível no Estante Virtual, site agrega vários sebos.

— As pessoas parecem estar procurando “O mez da grippe” para se informar, já que ele pode ser lido como um jornal — diz Victor. —E o seu impacto o agora é muito maior do que quando foi publicado, porque nos fala diretamente do que estamos vivendo. Até pelo seu aspecto memorialístico e arquivístico, diria que a obra só agora, 40 anos depois, produziu o máximo do efeito almejado.

Nascido em 1933, em São Paulo, mas radicado em Curitiba, Valência Xavier trabalhou com jornalismo e cinema, mas se firmou mesmo como um dos grandes representantes da literatura experimental do país. Seu trabalho é inspirado pelos modernistas e dadaístas franceses. Na juventude, Xavier morou na França e lá, segundo a lenda, teria convivido com Marcel Duchamp (1887-1968).

Os outros projetos literários do autor também fogem do convencional. “Desembrulhando as balas Zequinha”, de 1973, estuda o fascínio dos curitibanos por este doce, um produto local. O último livro do autor falecido em 2005, “Crimes à moda antiga” (2004), descreve caos reais ocorridos no Brasil do início do século XX.

Mas “O mez da grippe” é mesmo o seu texto mais famoso. Após a primeira edição pela Melhoramentos, a Companhia das Letras relançou a obra em 1998 (a reedição venceu o Jabuti de Produção Editorial). Em 2007, foi adaptado para o cinema por Beto Carminatti e Pedro Merege sob o título de “Mystérios”.

Joca Terron conviveu com Xavier no final dos anos 1990 e editou uma novela do autor, “Meu 7° dia” pela sua extinta editora, Ciência do Acidente. Ia editar outra novela do autor, “O corpo dos sonhos”, mas a saúde de Xavier se deterirou — e o texto continua inédito. Para Terron, “O mez da grippe” é uma “obra-prima”.

— Tão avançada em termos narrativos que só encontra paralelos em clássicos da literatura visual. Mas é um livro para poucos — diz o escritor.

Terron não acredita, porém, que a pandemia do novo coronavírus aproximará a obra do grande público.

— Não acho que ele terá grandes vendagens. Além da pandemia, estamos enfrentando uma epidemia de burrice. E a leitura de “O mez da grippe” exige que o leitor una outros fios além dos verbais, deve ser um leitor-montador — analisa Terron. — A obra do Xavier estava às moscas. Tristeza que o interesse venha por motivo tão macabro.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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