Para não dizer que não falei de Curitiba (Crônica Homenagem)

Maldita Saudade Literária Marginal de Jamil Snege

O mundo é um palco
O elenco é mal distribuído

Oscar Wilde

Faz um tempinho que Jamil Snege morreu, cara, mas, pô, o sujeito faz uma falta do diabo! Onde já se viu isso? Nem faz muito tempo e trocávamos figurinhas carimbadas de acontecências por atacado, e ele, generoso me mandava seus livros; seu enlivramento impresso em ironias e contentezas, em alegranças, prazeirices e disparates de sofrências, mas já com suas releituras em primeira mão de si mesmo, de um átomo numa transcuritiba do arco-da-velha. Já pensou?

Escrevia bem com sua lucidez-coivara, com seu pincel atônito de contar o que viu-viveu, aqui e ali com o irônico tom dos tocadores de tubas, sacando lances egnimáticos que traduzia em ‘literapura’ o bucólico, o pitoresco, o soro urbano, talvez até com um lado barrabrava de sinais de pânico em núcleos de abandonos. Jamil Snege faz falta e lá vamos tirar tintas de seus livros que  nos conduzem a meditações sobre ausências e finitudes. Os que vão sobreviver são saúvas-mandorovás entre grandes leitoas brancas? Só por Deus.

A mulher grávida tomando cerveja num bar, barriga de melancia estaria esperando o Jamil Snege? Tomo pela mão sua limpeza de ideias, entro em um bairro de Curitiba e passeio pensagens sobre ele, que se foi tão cedo, não quis esperar a madurança da gabiroba do tempo futuro que, bem falando, é mesmo um sem futuro num desmundo neoliberal que pinta e orna, sem nenhum humanismo comunitário. Ele iria descer a ripa. Faço isso em memória dele.

Lembro que um dia veio uma carta, comentários com garapas, um livro cheio de si, depois, mais pra frente, trocamos figurinhas carimbadas de ideias e surtos-circuitos afins, outros livros, causos, croniquetas, poemas e conversas fiadas, mais destrinches de ensaios, bravatas, panurgismos. Depois, telefonemas, afinal, aqui e ali, finalmente um clandestino e-mail raspando porque ele era irônico sem perder a ternura. Fui na fiúza. Hoje seus livros são ele ali, atrás de um quartzo-róseo pedindo oxigenação de seixos. Saravá, Snege.

Na Livraria da Vila aqui em Sampa, eu que sou um pidoncho oriundo da Estância Boêmia de Itararé como o Maestro Gaya e o pan-humorista Solda, ia caçar de saber se os seus livros estavam cuidadinhos lá, luzes de ribalta, nessa desvairada marginália emputecida de antros de escorpiões, entre a lucidez-loucura de Arrigo Barnabé, o som sizal Preto Brasil do Itamar Assunção e outros migrantes pés-vermelhos sem lenço e sem documentos. Caetanear, por quê não?

Jamil Snege tinha a finura e a sensibilidade no campo de lavanda das ideias. Tirava a carne esponjosa das palavras, e, nas ficções destilava o vinho-verbo. Faz falta o cara. Onde já se viu isso? Fina flor da espécie, fazia a gente rir de suas montagens criativas, feito um mandorová-camaleão sondando atrás da porta do corpo de baile das acontecências, entre a banda dos contentes e os quintais tecidos ao luar por suas doces memórias revisitadas para pôr assento de si no muito além de si, os pingos os is e dáblios.

No roda-cotia da tarde de um pré-prelúdio de Curitiba, um guri pés-vermelhos sonda garnisés atrás do calipiá. Sondei-o, de-través. Será o Snege vindo pedir ‘bença’ de novo pra cidade alma dele? Será o impossível? Os faniquitos do guri, os olhos de jabuticaba, a cetra de intenções nas mãos e os gestos indizíveis me apontavam parecenças. Ando sonhando o inexistente? Árvores riram sobre o relho sutil do ventinho cotó dessas minhas saradinhas lembranças dele, na rapadura da saudade cavando favas terçãs. Aleluia Snege. Hoje acordei cheio de louvação. Deve ser essa tubaina de limão-cravo, esse Taiguara no berço de Marcela, esse siricotico de final de ano beirando caraminguás de tristices.

Jamil Snege faz falta, iríamos rir de mundos e fungos, de ácaros e ícaros, ele destilaria veneno nas safadezas neoliberais, eu diria de sonhos com recheio de baunilha, seríamos jovens de novo, eu, um rapaz que amava os Beatles e Tonico e Tinoco, ele um polaco garrincha com amarelão correndo atrás de bola de meia pra fugir de catecismos enclausurados, sondando a liturgia do ‘carpiem diem’ atrás de um encardido cigarro meio mata-peito. -Garçom, mais uma, bota a saideira que hoje tô um porqueira enluvado.

Lá fora o sol-risal pendurado num andaime de nuvens-cãs, pedindo passagem pra fuligem da distante periferia que anoitece negro porque as tardes fumam as chaminés e os fornos carvoeiros. A cidade aqui e ali entrando pelo ralo de uma boemia que viça versalhada, pinduras, e etílicos forfés lítero-culturais. O figo maduro já mostra o zíper-carnegão do açúcar púrpura. Gralhas azuis nos pinheiros. Uma sanfona ao longe destrincha um xote plangente. Sondo o devir. Os paralelepípedos como cacau quebrado recebem tiriricas. Na estante de falso cedro, caço os livros do Jamil Snege e vou reler tudinho, de-vereda. Respondo presente pras ausências.

Gonçalo M. Tavares (Portugal) dizia “O homem rodopia atrás dos acontecimentos/E é editado/Como um livro/Pelo trabalho que aceitou”

Jamil Snege era ele mesmo, em si e por si, um livro aberto para o mundo, dando seu testemunho presencial de espírito elevado em meio a tanta barbárie, e assim escreveu-se inteiro e pleno para, feito um Rimbaud pós-moderno, dar testemunho de seu tempo, de sua resistência, de sua sensibilidade de alma nau em meio a tantos sargaços de frivolidades.

Resistir é preciso? Ele foi fora de série e faz falta. Aqui o tributo, um reconhecimento temporão numa croniqueta feito curtume de banzo etílico.

Curitiba, Sai de baixo!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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