Paris por um triz

Quando eu dormia no colchão pulguento do André Breton e era feliz em Paris

Não precisei ir aos confins das galáxias como o androide de Blade Runner para encarar situações inusitadas. Foi na suave “espuma dos dias” (merci, Boris Vian), na rotina pobre de bolsista em Paris, que vivi minhas maiores aventuras. Muitas delas espirituais.

Inicialmente morei na Maison du Brésil, na Cité Universitaire, perto do Boulevard Périphérique, o nome diz tudo. Num dia ameno de fevereiro, temperaturas já acima dos vinte graus – tinha até gente nadando no Sena – mudei-me para o coração de Paris; o City Hôtel, no 29, Place Dauphine, uma pracinha triangular que um jornalista chamou A Vagina de Paris, no bico da Île de la Cité. Morei ali cinco meses, antes de partir para o “Grand Tour na contramão”, até o sol da meia-noite na Finlândia, e depois para o Grand Tour legítimo: sul da França e Itália, incluindo a Sicília.

Só tempos depois, ao ler Nadja, o romance revolucionário de 1928 do surrealista André Breton – que entremeava páginas de texto com páginas de fotos – fiquei sabendo da ligação de Breton com a Place Dauphine e, mais especificamente, com o City Hôtel:

“Esta Place Dauphine é um dos lugares mais profundamente retirados que conheço, um dos piores terrenos baldios que existem em Paris. Toda vez que estive lá, senti abandonar-me pouco a pouco o desejo de ir para outro lugar, precisei argumentar comigo mesmo para me livrar de certas amarras muito doces, agradáveis, insistentes e, no fundo, destruidoras. Além do mais, morei algum tempo num hotel nesta praça, “City Hôtel”, onde as idas e vindas a toda hora, para quem não se satisfaz com soluções simplistas, são suspeitas.”

Mon cher André, ficar sabendo que, 35 anos depois morei no quartinho da mansarda do City Hôtel, com vista para o Louvre, dormindo as poucas horas que dormia no mesmo colchão em que você dormiu, me traz uma sensação muito forte de pertencer, de uma forma física, ao que de melhor a cultura do século 20 ofereceu. Só me resta arrematar com a frase final e definitiva de Nadja: La beauté sera CONVULSIVE ou ne sera pas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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