Patrocinadores de si mesmo

O capitalismo selvagem tem selvagerias muito bem disfarçadas. É o caso, na Cultura, dos atos indelicados dos patrocinadores. Menosprezam autores, agridem suavemente o público, abusam do privilégio de patrocinar as artes.

Há mil maneiras do patrocínio cultural ofender a sensibilidade das platéias, e todas têm sido sub-repticiamente super aproveitadas na comunicação dos espetáculos. Quem ainda não sacou o que sugiro é porque já acostumou com a invasão das marcas nos eventos. Nossos olhos e ouvidos nem percebem o exagero comercial infiltrado através do patrocínio.

Se não fui suficientemente claro até agora, vamos pro escurinho do cinema. Assim que começa um filme nacional, lá vem, antes dos créditos artísticos, uma enxurrada de logotipos. Eles brilham tanto no início da sessão que chegam a causar reação negativa na assistência que anseia pelas imagens do filme. Às vezes, pela quantidade de logos patrocinadores, ou pela inserção uma a uma das marcas, vão-se uns impacientes minutos.

É o caso de se perguntar: por que estão lá tão avantajadamente? Que direito a priori é esse, que quer roubar a cena antes das cenas do filme? A mim incomodam pelo atropelo das expectativas que nos levam às salas. É como se entre o cineasta e seu público surgisse uma disputa prévia pela atenção dos cinéfilos. E é, descaradamente.

Imaginem o Woody Allen, que decidiu filmar com patrocinadores europeus, quando vier ao Brasil. Imaginem na tela, antes dos clássicos letreiros brancos sobre fundo negro, as marcas das empresas verde-amarelas, gritando visualmente que são mais importantes que Woody Allen. Que sem elas não haveria filme de Allen. Uma grosseria com a genialidade dele.

Puizé, afora o cinema, tal onda abusiva invade todas as praias – do teatro aos shows, da dança às conferências culturais, das artes plásticas às feiras e bienais do livro, e o escambau.

Se você não é rabugento que nem eu, dou algumas medidas da desmedida invasão: no relevante projeto Fronteiras do Pensamento, toda vez que um palestrante nacional ou internacional assume o púlpito para falar, sua relevância fica diminuída. Pois, na plaqueta do púlpito, não está o nome do ilustre convidado. Está o logotipo do patrocinador, vocês sabem quem. Na minha incomodada opinião, não há dinheiro que compre esse destaque. Destacados, acima da marca intrometida na hora e lugar errados, são os pensadores e sua bagagem, que é o que realmente sustenta o evento. Na plaqueta, para registro no recinto e na repercussão midiática, devia constar a identidade do pensador. Nesse caso, o marketing e grana berram mais alto.

Noutro dia, ao assistir Hécuba, no Theatro São Pedro, mais falta de nobreza de um patrocinador, uma operadora. De cara, no folder, a demonstração de força da verba: peça gráfica lindamente produzida, com 12 páginas. A apresentação, na página 2, deveria elevar o espetáculo em si. Mas se ocupava inteiramente do institucional da empresa, das loas à sua pujança (fosse mesmo pujante não prestaria os desserviços telefônicos que presta). E, uma prova palpável do descaso com os criadores do espetáculo: os nomes/créditos da direção e equipe apareciam somente lá na página 7!

Depois as luzes diminuíram, veio o pior: um jingle ecoando em alto volume, como se ali estivesse a clientela num balcão da operadora. Em seguida ao jingle, locução marqueteira. Para quê tamanho merchandising de serviços? Para tentar fazer valer cada centavo aplicado, óbvio. Aí as luzes se apagam, as cortinas abrem, a tragédia no palco começa. Nos tímpanos, ainda ecoa o preâmbulo patrocinador. Putz!

Até aí tudo bem, como diria um masoquista. Acontece que o verdadeiro patrocinador é o governo, através da renúncia fiscal. E, no fundo, no fundo, é a população, que subsidia os governos. Quer dizer, não há mecenas genuínos nem legítimos. (A não ser as honrosas exceções, patrocinadores que tiram do próprio bolso. E cabe uma ressalva aos apoiadores culturais. Esses merecem palmas: entram com seus recursos e não ganham evidencia.)

Enfim, o patrocínio cultural deveria saber o seu devido lugar: nos créditos finais de cada projeto. Aí sim seria louvável. Mas, do jeito como se apropria do esforço dos artistas para faturar o mérito principal, é apenas um urubu mais sofisticado. Ele se alimenta de carne viva para engordar sua imagem.

5 de novembro, 2012

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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