Pau no Leminski

© Tiago Recchia

Conheci o Paulo Leminski em 1963. Eu, aluno do curso Abreu, me preparava para o vestibular de Direito, ele, professor de história e do que chamavam de cultura geral. Foi impressionante. A figura de cabe­los longos, voz um pouco rouca e uma retórica indestrutível desfiava a história da humanidade e questionava a cultura estabelecida e os modelos literários que considerava gastos. Beirava os 20 anos e parecia ter lido tudo, de Platão a Joyce, e no original. No intervalo entre as aulas, dissolvia nossas dúvidas de estudantes de latim. O vestibular de Direito, nessa época, exigia português, história, latim e outra língua. Ele parecia saber tudo o que se precisava saber para as quatro provas.

Minha vocação de jurista dissolveu-se como tantas outras vocações definitivas que tive. Minha vida encaminhou-se na militância política e minhas ideias sobre arte e literatura estiveram engessadas pelos dogmas da época. Leminski era um ruído questionador. Presente em todos os debates. Das ideias políticas à literatura. Do cinema à música popular. E eu creio que essa foi sua contribuição permanente à cidade e a todos nós. Seu permanente comportamento transgressor, inconformista, iconoclasta, não permitia o conforto do consensual. Sua avidez pelo conhecimento o levou a todas as experiências e a todos os territórios, inclusive aos mais destruidores.

Eu o reencontrei quando ele passava pelo pior momento, mesmo assim lúcido e desafiante em seu transe suicida. Mais que isso, o re­encontrei através da obra. Li o Catatau, a obra mais instigante já es­crita nesta área do planeta. E me pareceu ver ali vertido, em exercício de ficção e linguagem, todo o conhecimento que ele acumulou desde sempre, em incrível monólogo onírico de René Descartes em visita a Pernambuco no período holandês. O espanto do filósofo diante da natureza dos trópicos e dos costumes nativos. A falência da razão cartesiana. “Duvido se existo, quem sou eu se esse tamanduá existe?”, pergunta o filósofo. Reli o Catatau com Décio Pignatari, que comandou a preparação de sua edição pela Travessa dos Editores. Foi novo apren­dizado. Durante meses trocamos ideias sobre as fontes e as invenções de Leminski, para perceber toda a extensão de seu processo criativo e de seu conhecimento.

É, para mim, a sua grande obra. Não creio que a poesia de Leminski tenha alcançado o grau de complexidade e tensão criativa do Catatau. Ela passeia por outro terreno, da cultura pop, o que não me impede de gostar e muito de poemas e letras que criou, onde se percebe o mesmo espírito transgressor. Nada que se compare ao desafio de inteligência que o romance-ideia propõe e que o transforma em obra seminal. Cer­tamente de digestão difícil e pouco compreensível para quem a aborda com ânimo de leitor de .narrativas horizontais ou para quem simples­mente não lê e não gosta porque sabe que o Catatau é um exercício que constrange a mediania. Para estes, o gênio de Leminski criou o mote que ele fez inscrever nos muros da cidade: “Pau no Leminski”

Fabio Campana|Revista Ideias 154|Agosto|Ano XI -11 de agosto| 2014

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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