Pessimismo

O verme agora é outro

Deu ruim. Tá tudo dominado. Sempre achei que, nos piores momentos da vida, bastaria respirar bem fundo e tomar um copo de água para me acalmar. O ar a gente já sabe que está podre há muito tempo” mas a novidade de que a água está gravemente contaminada por agrotóxicosé um tremendo soco no estômago. E o presidente segue liberando cada vez mais venenos para alimentar o agronegócio

Eu não quero ser a louca da garrafa, eu fico arrasada quando lembro que no futuro haverá mais plástico nos oceanos do que peixes, mas, desde que minha filha começou a comer, só cozinho para ela usando água mineral. Sempre acho que o André Trigueiro vai aparecer de repente na minha cozinha e me dar um sermão, mas para onde correr? E, se corrermos e der sede, como lidar com a informação de que o querido filtro de barro (e tantos outros filtros mais metidos e caros) não dá mais conta do problema? Lembra quando a gente tomava Annita para derrubar os vermes? Que saudade! Como talvez dissesse um cineasta quase arrependido, o verme agora é outro (e não para de armar seu séquito).

Você compra alface orgânico, chega em casa e mete as folhas na água da pia, que está batizada com mais de 20 tipos de pesticidas cancerígenos —adiantou acordar cedo para ir na feirinha natureba? Vamos então desistir de tudo e nos alimentar com embutidos logo de uma vez, na esperança de encurtar a palhaçada? Lembra quando a avó de um colega de um tio distante tinha câncer e a gente ficava chateado? Agora quem tem câncer são nossos amigos bem próximos e jovens.

Nos Estados Unidos, uma senhora péssima deixou de doar dinheiro para o tratamento de uma criança com câncer porque descobriu que ela era criada por um casal de lésbicas. Daí você pensa: “É pra desistir do mundo”. Mas calma, justamente porque essa anta tornou pública a sua ignorância, a vaquinha virtual lançada pelas mães da menina deu certo. Meu pessimismo só não me afunda de vez porque estou aqui agarrada em pessoas e ideias boas.

Imagine uma campanha para filmar tio racista e homofóbico, em vez de professor de filosofia? Fico fantasiando com grupos de WhatsApp e redes sociais mais preocupados em desmascarar o número alarmante de casos de abuso infantil dentro de casa do que em pirar com aulas de comunismo nas escolas. Livros e arroz com feijão em vez de armas e ração humana. Os prédios tombados de Higienópolis e não o Itaim com sua arquitetura importada do inferno.

Em vez de o Ministério da Saúde proibir o termo “violência obstétrica”, como seria bom se todas as mulheres pudessem ter (ou não) seus filhos sem sofrer tantos abusos físicos e psicológicos. Chega de proteger os médicos, eles não são deuses! Eu passei por quatro obstetras e voltava para casa sempre solitária e assustada. Cínicos, dinheiristas, entediados, vedetes midiáticas deprimentes. Se é assim em consultórios recomendados, não gosto nem de imaginar pelo que passa a maioria das pessoas.

Queria cortar meu cabelo em paz, sem ver estampado numa revista triste o jantar de Moros com Anas, Lucianas e Zezés. A mesma publicação traz os bastidores do casamento do filho Zero Três. Como não sentir uma imensa preguiça da humanidade? Não respiro nem bebo água —não dá mais— , mas ainda sonho com um país com mais filosofia, sociologia, antropologia e milhares de trabalhadores árduos do nosso cinema. E, definitivamente, sem um presidente que oferece suas próprias eleitoras para turismo sexual.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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