Planta de terraço

Ela chegou ali numa tarde em que o sol fazia do céu uma placa de churrasqueira, crestando a pele e encandeando os olhos. Precisou de três homens suados para trazê-la, aos arrancos, dentro de um pote de barro atochado de terra, pesado como um bloco da Pirâmide. Foi instalada na quina do terraço onde o vento sul e a chuva batiam oblíquos e fortes quando era o caso, e onde o sol da manhã fazia sua vistoria diária entre as seis e as oito. Era uma palmeira-ráfia altiva, eriçada de lâminas verde-escuras, reluzentes, num desenho entrecruzado que o mexer do vento e os vidros da porta corrediça multiplicavam.

Parecia que a futura crônica estava se encaminhando bem, rumo a alguma platitude final sobre a possibilidade de harmonia entre a natureza e a construção civil, mas aí o dono da casa viajou, demorou-se, foi correr trecho para minimizar o vermelho do saldo. Tome avião, tome hotel, tome entrevista na TV, tome passagem de som, tome espetáculos com zilhões de decibéis para porrilhões de pessoas, tome van do camarim para o aeroporto. E no retorno, depois de cumpridas as mais agradáveis formalidades do reencontro familiar, chegou o momento da rede no terraço. Espanto! Horror! O que era aquela estrutura marrom, cinza, com os ramos pendidos, as folhas ressecadas, espantalho de si própria? Como pode uma criatura em menos de um mês passar de vicejante a escangalhada?

Pode. Aquele recanto de terraço onde-o-vento-faz-a-curva a colocou num ângulo privilegiado do leiaute, deu-lhe uma visibilidade que vizinhos de outros prédios não deixaram de constatar; mas toda superexposição tem um preço. O dono da casa fumou em paz seu tranquilizante enquanto meditava sobre o preço da fama, o preço de brilhar e arder sob o resplendor das luzes “intelabeam”, sobre o deficit metabólico acumulado dos jet-lags, sobre o distanciamento brechtiano que lhe permitia berrar versos e fazer coreografias ensaiadas enquanto lá dentro de sua mente pensava que prato iria pedir no restaurante após o show. O vento fustiga e mata, concluiu ele, por isso que a mata se agrupa, se encouraça em números para se proteger. Palco fustiga e mata, derivou: mas lá em cima a gente é uma dúzia, e é no astro principal que mais recai o olhar vampírico e sequioso da multidão. Seu álbum seguinte se chamou “Planta de Terraço” e a foto da capa foi uma do seu próprio rosto depois de acordar e antes de fazer a barba.

Escusado dizer que foi um fracasso, o que lhe permitiu a saída honrosa de ir morar numa beira-de-praia num Estado onde ninguém o conhecia, e encher o terraço de palmeiras-ráfias que nas noites de cigarro aceso farfalhavam agradecidas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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