Poesia pura

E a madrugada é apenas uma criança. Nela me refugio. Sou noturna. Trabalho com as estrelas e a lua. Quando o sol nasce, agradeço. Para poder contemplar o que descubro nas noites mal dormidas em que penso, reflito, sinto toda a pureza do amor maternal. Insônia. Criatividade em ação. Na noite eu me perco e me acho. Bonito saber que quem é da boemia é quem descobriu a magia dos instantes. Errante e aprendiz. Um tiro no pé. Mas o abraço permanece. Aquece. Desfaz os medos e desengaveta segredos. Escrevo sobre o que mesmo? Esqueci. Era sobre o amanhã. Mas ele não chegou. O paraíso é mesmo um abismo onde se acorda e se vê que já é hora de tomar café da manhã, ler jornal, abrir portas para os ignorantes. Estou aqui. Não saí. Quis ficar para namorar as letras nos papéis de seda. Sensibilidade máxima. E o vapor do trem sinalizando a próxima parada. A estrada que vicia. Leva ao mar. Traz o tremor da Terra para o meio da garganta. Gritarias histéricas. E todo mundo surdo, dormindo, reagindo, brincando. Meu avô era sério, sisudo, olhar profundo de quem sabe. Ele não entendia, mas sabia. Eu não sei, mas entendo. Talvez o segredo seja entender e saber. Quem irá perder? Preciso comer e vomitar. A dor e os desejos da carne. Anel solitário no dedo de um marinheiro. Que viu a conclusão da vida ao desbravar mares. Olha, o horizonte! Quanta delicadeza! Vou parar por aqui. Clarice Lispector me licencia a assumir a própria experiência de vida. Obrigada. Já é tarde.

Dia dos pais batendo na porta. Graças a Deus, meu pai é pai presente. Mas eu não tive convivência com ele desde os meus três anos. Minha referência como cuidador, protetor e doador de amor no cotidiano foi meu irmão mais velho. Ele me buscava na escola e eu o via como referência na vida. Segui seus passos, buscando o meu próprio caminho. Amanhã muitos filhos não terão um pai para doar e receber amor. Pela ausência, pela distância, pela perda, pela separação, pela negação de paternidade, pelo abandono, enfim, por diversas razões que desconhecemos de perto. Olhar com cuidado o que não ter a presença de um pai significa é buscar um caminho de cura e ressignificação. Obviamente que falo de uma posição privilegiada, pois estudei, estudo e busco entender a complexidade das relações humanas na Psicologia. Muitos não têm acesso a isso ou não buscam o entendimento de muitas questões em sua vida pela falta desse papel tão importante na formação e no desenvolvimento de uma criança.

Muitos me criticam por eu guardar a dor de quase ter perdido um pai, mas isso é no nível racional dessas pessoas. Não entendem as marcas que permeiam toda uma vida de alguém que viu seu pai encarar a morte de frente e sobreviver. Não é falta de perdão ou entendimento no nível da mente. É dor latente que permanece. Por isso, enalteço meu pai, porque nada mais bonito que o gesto de carinho e a tentativa de recuperar o tempo perdido. É o presente que dou a ele diariamente. Por ter me dado tanto como pôde e como aprendeu a dar. Nossos pais nos pedem compreensão e aceitação de quem eles são.
Voltando ao texto, este pai que teoricamente não existiu na vida desta pessoa está presente na memória de sua mãe. Há o afeto, há o respeito por sua memória, há a tentativa de torná-la viva na criação de uma criança sem pai

Porque pais sim são importantes, apesar de eu achar ainda que o papel de mãe é fundamental. Não defendo nada dessas besteiras de família tradicional. Acho totalmente fora do contexto. Mas uma criança com um pai parece ter mais confiança em sua própria capacidade de lidar com os desafios da vida. Não estudei isso a fundo. Emergiu aqui escrevendo este texto (corrijam-me se eu estiver errada).Deem uma chance a seus pais dentro de vocês. Por mais que haja marcas, rompimentos, abandono, brigas, ausência, desafeto, divergências. Todos temos pedras nos sapatos. Inclusive nossos pais. Os mestres nos pedem que cuidemos de quem cuidou da gente. E mesmo que não tenham nos cuidado, é nossa chance de mostrar que o amor é mesmo sábio e nos coloca frente à grandiosa chance de sermos maiores que nossas próprias dores e reatar os laços perdidos.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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