Quando as latrinas transbordam

© Kim Hong ji|Reuters

Por certo, não era apenas na Dinamarca de Shakespeare que havia algo de podre. Lembram-se de Hamlet? Pelo odor, aqui abaixo da linha do Equador, no planalto central do Brasil e em boa parte do país-continente também há. Muito mais do que supunha a nossa vã filosofia. E há muito tempo. Os olhos poderiam não ver, mas os narizes sempre sentiram. Quer dizer, um dia toda a podridão brasileira viria à tona, como está vindo.

Há quem suspeite que a patifaria e a corrupção chegaram a Pindorama com as caravelas de Cabral. Aqui se puseram à vontade e vinham resistindo a todos os pesticidas, com extrema bravura. Culpa nossa, que nunca nos preocupamos com as fezes de nossos políticos e administradores.

Sim, sensível leitor, fezes, aqueles resíduos não absorvidos pelo organismo humano e que são expulsos periodicamente no vaso sanitário ou local que lhe faça as vezes. A lição foi aprendida por Gulliver, de Jonathan Swift, quando visitou o país de Lagado e soube da existência ali de uma tentativa científica de determinar o caráter dos políticos pela análise de suas fezes.

Rubem Alves, o meu inesquecível filósofo favorito, já havia enfrentado o tema. Valho-me das palavras dele para expressar que a erupção fecal apodrecida, que empesteia o ar no mundo da administração pública (no Executivo, Legislativo e Judiciário) é sempre produzida de forma meditada. “Fezes são o poder, fezes são dinheiro” – constatou Rubem. A única preocupação de corruptos e corruptores é não serem apanhados. Ou que seus excrementos transbordem a fossa e passem a ser do conhecimento público.

Pois é o que ocorre no presente momento, ainda que os interesses envolvidos continuem sendo imponderáveis.

Até bem pouco tempo, todo mundo sabia ou desconfiava da existência das fezes públicas misturadas com as fezes privadas, mas prevalecia o ensinamento de Maquiavel, segundo o qual pouco importa que o príncipe tenha fezes abundantes e fedorentas; o que importa é que os súditos pensem que suas fezes são poucas e perfumadas. E delas se possa fazer bom proveito.

Aí assumiu o trono o PT de Lula e, ante os excessos da produção obreira, revelou-se inútil trancar as privadas, na esperança de que essa medida escondesse o cheiro. E, graças à atuação da Polícia Federal do delegado Daielo, do Ministério Público dos procuradores Dellagnol e Santos Lima e do Judiciário do juiz Sérgio Moro – autoridades do lado bom da Força –, o odor chegou ao conhecimento público.

Hoje, graças à devassidão revelada, as prisões da República de Curitiba estão repletas, aguardando vagas para novos e inevitáveis recolhimentos. Do lado de fora, semiasfixiada pela catinga, a patuleia teme apenas que uma ventania despropositada, gerada nas altas esferas judiciais, dissipe a fedentina. Ou o que seria muitíssimo pior: que as pessoas acabem se acostumando com o fedor, posto que, como também advertia Rubem Alves, o olfato tem o curioso poder de adaptação. E os cidadãos, ainda que não aprovem a sujeira e o aroma dela decorrente, passem a conviver com ele sem maior problema. Os narizes se tornem tolerantes e nem mais sintam o cheiro. Ou se prefira tapá-los, como se isso bastasse para purificar o ar.

Outro dia, ex-presidente da Construtora Odebrecht teve a desfaçatez de declarar que a companhia havia “comprado o Brasil”: usinas, portos, aeroportos, metrôs, rodovias, prédios, estádios… Estava tudo nas mãos da empreiteira e de outras de igual ou menor porte, mas com fezes igualmente abundantes.

Estava na hora de alguém tapar a bunda dessa gente. Célio Heitor Guimarães

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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