Quando há um câncer no caminho

O gaúcho David Coimbra é um dos meus colunistas favoritos. Falei-lhes dele aqui mesmo, algum tempo atrás, no texto ‘O cavalinho na chuva’, quando David resolveu repreender o filho Bernardo, “na franja dos seis anos”, que “choramingava por motivo reles”, mandando-o “tirar o teu cavalinho da chuva”, e atiçou a vontade do pequeno Bernardo de ter um cavalinho.

Pois o David pegou um câncer. Com metástase. E quando descobriu que ia morrer escreveu um livro. Nele, conta, com inusitada coragem e honestidade, como enfrentou os seus medos e a maligna doença. A narrativa intercala passado e presente e conta um pouco da sua própria história até chegar a uma posição estrelada no jornalismo rio-grandense e brasileiro.

Mas o personagem central da história é aquela “doença ruim”, cujo nome não é ainda sequer pronunciado por muita gente. Pois, David Coimbra enfrentou-a com determinação e esperança. Foram anos de renhida luta, que o obrigaram a mudar-se para os Estados Unidos – logo ele, gaúcho enraizado no Rio Grande, cujo distanciamento do torrão natal limitava-se a férias e passagens de anos no litoral catarinense –, nos quais a presença da família e dos amigos ganhou importância fundamental.

Tudo isso é contado, incluindo a vitória buscada, em “Hoje eu venci o câncer”, edição da L&PM presente das livrarias. Com “um texto surpreendentemente leve”, como o que escreveu quando o recebeu o aterrador diagnóstico – assinalam os editores –, David narra a sua odisseia, “para falar da vida, não da morte. E dessa curiosa experiência no limiar entre elas” – como pontua ele.

O embate não foi fácil. Desde o recebimento da notícia aterradora – dia em que o cronista ainda foi capaz de escrever uma crônica que deveria caracterizar-se pela leveza e que termina com uma frase de Sharon Stone: “O humor é uma forma de ser valente”, que David reproduziu a fim de dar coragem a si mesmo – à cirurgia a que se submeteu e à sequente peregrinação por médicos e hospitais. O autor salpica a narrativa com pitadas de bom humor. Como quando a funcionária do laboratório foi tirar-lhe sangue e indagou se ele tinha medo de agulha. Resposta: “Querida, nos últimos dias, contaram-me a barriga, tiraram-me um rim, me costuraram, abriram um buraco no meu flanco e lá me colocaram uma sonda. Uma outra sonda eles me enfiaram bem no canal do meu triste tico e depois tiveram que tirar num puxão só. Não… não estou com medo de agulha, ultimamente”.

David esteve no Sírio-Libanês, em São Paulo, submeteu-se a nova espécie de tratamento fisioterápico, voltou a Porto Alegre e ao trabalho. Os médicos não sabiam a causa da doença. Genética, talvez. Na família e entre os amigos, houve uma mobilização ecumênica para pedir a interferência de Deus, através de missas católicas e luteranas, sessões espíritas, reuniões de grupos de oração e até cultos em sinagogas. Mas a doença é sinuosa, traiçoeira, finge-se de morta para voltar a todo vapor.

Em busca de um tratamento novo David Coimbra foi para os Estados Unidos. Queria ser cobaia da imunoterapia. Os cientistas descobriram que o câncer “engana” o hospedeiro. Envia uma mensagem ao sistema imunológico avisando que está tudo bem, o que não é verdade. E o inimigo continua avançando em silêncio. A imunoterapia bloqueia a mensagem falsa e incentiva o sistema imunológico do paciente a continuar atacando com vigor o inimigo.

Ao desembarcar em Boston, em pleno inverno, David descobriu que no Rio Grande do Sul não faz frio; sente-se frio. Em Boston sim, faz frio, em torno de 20 graus abaixo de zero. Além do que, nos primeiros momentos, teve que se virar numa língua que não era a dele, num lugar desconhecido e estando totalmente sozinho – a mulher e o filho levariam ainda algum tempo para ir.

Depois de idas e vindas, em abril de 2017, David passou por mais uma cirurgia, o que gerou uma coluna publicada no Zero Hora de Porto Alegre no dia 14 e intitulada “Meus dias de inferno”, onde confessa que conheceu, um por um, os nove círculos do inferno descrito por Dante. Teve que enfrentar uma operação considerada “grande” pelo cirurgião. Quando soube disso, ele se assustou, e depois viu que tinha razão para se assustar. A recuperação foi lenta. Cheia de cuidados, estrições e ainda dor, “com um corte de 22 centímetros atravessado no peito e a prótese das costelas ainda se ajeitando”.

Aí, um tumor no sacro, osso que se localiza na base da coluna, foi detectado. Mas esse foi morto com cinco sessões de radioterapia e volta da imunoterapia.

Hoje, David Coimbra diz que, em tese, está com a saúde íntegra: “Digo ‘em tese’ porque, entre o nascimento e a morte, fatos sobre os quais não temos controle algum, acontece uma série de outros fatos sobre os quais acreditamos ter algum controle, mas não temos também. Ou seja: nada na vida é definitivo, tudo é em tese”.

Com a dor física e com a ameaça que a dor representa, David aprendeu que não deve e não pode ficar preocupado com o futuro. Tem de se preparar para o futuro, mas não se afligir com ele. Até porque hoje está convencido de que o futuro não chega nunca. “Quando chega, se transforma em presente”.

“Então, o que aprendi” – sublinha – “não foi nada grandioso. Ao contrário, aprendi que não são supostas glórias ou façanhas que vão me fazer feliz, e sim a soma de dias bons. Aprendi que a cada dia você constrói o seu passado e é esse passado sólido, harmonioso e, se possível, bonito que fará com que você se sinta feliz”.

Célio Heitor Guimarães

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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