Todo mundo tem um bolsonarista para chamar de seu; eu tenho a minha

Quantos, dos estupefacientes 33% da população fiéis a Messias, continuarão confiantes no governo?

Sergio Moro caiu atirando, munido de um arsenal de provas que promete liberar a conta-gotas, para sangrar o presidente.

Diante das acusações de interferência na Polícia Federal e do adeus do ex-juiz de Curitiba, quantos, dos estupefacientes 33% da população fiéis a Messias, continuarão confiantes no governo?

Todo mundo tem um bolsonarista para chamar de seu. Eu tenho a minha.

P. desenvolveu um ódio incurável ao PT porque acompanhou de perto, por meio do marido engenheiro do setor de energia, a feérica escalada de corrupção dos anos Lula e Dilma. O cônjuge participou de leilões de obras públicas e, sem se corromper, viu o “quem dá mais” levar os contratos. Depois da recessão agravada pela nova matriz econômica, ele amargou o desemprego, acirrando a ojeriza da mulher pelo partido e pela esquerda.

O casal sofreu o achatamento de renda enfrentado por grande parte da classe média e percebeu, na ascensão da chapa Bolso/Guedes, a aliança sonhada entre a repugna que sentia da política e a promessa do menos Brasília e mais Brasil.

P. se engajou nas correntes midiáticas de Jair, repostando fake news no Zap, no Twitter, no Face e no Insta com a ira dos possuídos. Movida a ressentimento, ela acreditou no discurso antissistema da extrema direita, que prometia tanto a concertação do Congresso, do Senado e do Supremo quanto a forca aos comunistas, aos artistas mamadores das tetas e aos assaltantes que a atormentavam pelas esquinas do Leblon.

A eleição de Bolsonaro não diminuiu a frequência de suas postagens. Dois dias depois da vitória, P. repassou uma publicação com a foto de Marcelo Adnet, emoldurado por letras garrafais, acusando o ator de ser o dono da voz que imitara a do então candidato, supostamente gravada no hospital onde ele se recuperava da facada de Adélio. “VAMOS BOICOTAR MARCELO ADNET!”, incitava o post.

Eu convivia com P. havia mais de 20 anos. A publicação mentirosa, pedindo a cabeça de um colega que admiro, bem como a ciência de que a raiva orquestrada tinha como alvo o setor ao qual pertenço, me fez escrever uma mensagem no seu perfil.

“P.”, comentei, “conheço o Adnet, a dublagem de Jair não foi feita por ele. Qual o sentido de perseguir um ator jovem e talentoso? Vocês ganharam a eleição. Por que alimentar o caça às bruxas, agora que o pleito terminou?”.

Ela não me respondeu. Dias depois, repassou mais uma fake, apontando o ex-deputado Jean Wyllys como mentor da tentativa de assassinato de Messias. De pronto, enviei nos comentários o desmentido da Agência Lupa, que faz checagem de notícias fraudulentas.

P. me cancelou no Face e nunca mais nos falamos.

O homem é um animal gregário. Minhas reprimendas roubavam de P. o prazer do pertencimento. Ela se transformara numa das Fúrias que, junto a tantas outras, havia tirado o PT do poder e entronizado o justiceiro. A eleição era só o começo de uma longa vigília. P. movera o tabuleiro graças a uma corrente de engajamento que dera sentido à sua vida e da qual não queria mais se separar.

Desde o meu banimento do seu perfil, pergunto a amigos comuns sobre a resiliência de P., mas nada parece demovê-la do culto ao líder.

O despreparo de Weintraub, o delírio de Goebbels do ex-secretário da Cultura, a vizinhança do Vivendas da Barra, os ataques à China, o filé-mignon dos filhos, as queimadas da Amazônia, o menosprezo do vírus, o boicote ao confinamento, a demissão de Mandetta, o comício antidemocrático do dia do Exército e a aproximação com o velho centrão, nada abalou a sua fé.

Nos raros momentos de desconforto com Jair, havia sempre o ex-ministro da Justiça e o ainda ministro da Economia para reassegurar a idoneidade do governo e o futuro liberal do país.

P. era a alma dos 33%.

Desde a ruidosa renúncia de Sergio Moro, no entanto, sua rede social emudeceu. Dessa vez, as denúncias não partiam da Globo comunista ou da Folha esquerdista, mas do herói da Lava Jato que, não satisfeito, ainda afirmava que o PT, mesmo sob investigação, jamais interferira no trabalho da Polícia Federal.

Difícil saber se P., convencida pelas nuvens bolsonaristas, verá no ídolo um traidor, ou se, em meio à manada, dará as costas para o mito.

E daí? Daí que P., mais uma vez, tem o futuro do país nas mãos.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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