Quantos portugueses são necessários para trocar uma lâmpada?

Vinha um português, com sua família, dirigindo pela estrada quando um carro da polícia o faz parar. O portuga fica todo nervoso com a aproximação do guarda.
– O senhor está com o porta-malas mal fechado. Diz o guarda.
– Ufa! Pensei que o senhor queria me pedir os documentos que eu não tenho.
A mulher do português percebe a mancada e tenta remendar:
– Seu guarda, não dê bola para ele, quando bebe sempre diz besteira.
Até agora quieta no banco de trás, a sogra comenta:
– Eu disse que esse negócio de comprar carro roubado daria problema.

A piada é típica, seguramente deve ser contada em outras partes do mundo com outro personagem no lugar de burro. Fosse nos Estados Unidos, o ingênuo seria o mexicano, na Argentina, os galegos são os ignorantes, na França o belga é que ocupa essa função, na Inglaterra o irlandês é o alvo. Inclusive, dentro de Portugal, essa piada seria contada com os alentejanos de protagonistas. Ou seja, não há nada de original na nossa pirraça contra os portugueses, muitos povos escolhem outros para colocar nesse lugar.

Mas a questão mais interessante é: do que é mesmo que rimos nesses casos? A primeira resposta é a mais fácil, rimos da ingenuidade, da estultice alheia. Na piada acima, por exemplo, quanto mais eles tentam se defender da cilada que eles mesmos criaram, mais se acusam. Passam atestado de burrice o tempo todo.

Uma piada funciona quase sempre da mesma maneira, fazemos um convite a um outro pra rirmos juntos de um terceiro excluído da cena. Ou seja, se eles são burros, os otários, por conseguinte nós somos os espertos. Mas uma questão à frente revela-se um pouco mais delicada: por que o nosso burro de plantão seria o português? Por que quando alguém diz: “sabe a última do português”, todos sabem que lá vem piada, e que o lugar dele é o mesmo de sempre, de ser bobo?

Podemos explicar isso como sendo o retorno de um ódio antigo. Recalques herdados de quando fomos colônia. Afinal, ficamos sob o domínio português durante séculos. Agora teria chegado a hora da desforra, logo,vamos então gozar deles. Não creio que pensar nessa direção seja equivocado, apenas revela-se incompleto. Será que dá para fazer uma oposição simples entre nós, os brasileiros, e eles, os portugueses? Geograficamente sabemos que é fácil, uma grande distância nos separa, mas historicamente é um pouco mais complicado. Quando mesmo que teria começado um e terminado o outro? Quando foi que o Brasil nasceu e deixou de ser uma extensão portuguesa? A questão é que nós nos tornamos o que somos graças a eles. Em certa medida somos o sonho de Portugal, ou pelo menos, o que conseguimos fazer com o que eles fizeram conosco quando nos fundaram. Quando falamos de Portugal, queiramos ou não, estamos lidando com os nossos pais fundadores. A verdade é que nós temos muito mais de portugueses do que gostamos de admitir.

Freud dizia que é típico de povos, países ou cidades que querem se diferenciar fazerem piadas uns dos outros. Chamava isso de narcisismo das pequenas diferenças. As piadas funcionariam para aumentar a pouca distância que separa essas comunidades, afinal, as identidades são sempre contrastantes. Então, se nossa diferença estivesse consolidada num patamar distante, não seriam necessárias piadas assim. Nós fazemos piada justamente daqueles que estão próximos, por essência, por história ou por vizinhança. Os Argentinos, por exemplo, que também comparecem ocasionalmente nas nossas piadas, é um exemplo de diferenciar-se pela vizinhança.

Para a psicanálise o humor é feito daquelas coisas que não podem ser faladas de outra forma, é uma espécie de contorno sobre um assunto que diretamente é de difícil abordagem. O efeito que uma piada produz é de bem estar, porque economizamos a energia do recalque. Vivemos sempre constrangidos por inúmeras barreiras que nos condicionam, quando uma delas se abre, a sensação é de prazer. Por momentos, agimos como crianças despreocupadas, como se não tivéssemos obrigações com nada. Nesses momentos nossa única preocupação é obter prazer, nem que tenhamos que sacrificar o bom senso, a racionalidade ou a lógica.

Por exemplo, não faz muito tempo fazer piadas sobre a burrice feminina era comum, mas nos novos tempos da libertação das mulheres e do politicamente correto elas já não cabem. Por isso inventamos as piadas de loira, uma maneira de uma parte do conjunto das mulheres ser representante do todo, justamente por que as piadas burlam a repressão. Fazer pouco das mulheres é mais do que um hábito machista, é uma necessidade, herdada da infância, de diminuir o tamanho da mãe, aquela giganta poderosa que fazia gato e sapato conosco quando éramos pequenos. Convenhamos que não fica bem para o currículo dos machos ter iniciado a vida submetidos, e quanto, a uma mulher. Gozando das mulheres minimizamos o enorme papel que tiveram e, pior, ainda têm, naquilo que somos.

Ora, se as piadas burlam um recalque, de que se trata nas piadas de português? Acredito que as piadas têm a vontade de apagar nossa origem, de menosprezar a força da marca fundadora que os portugueses nos legaram.

Um dia descobrimos, quase sempre com sofrimento, que nossos pais não são nenhuma maravilha. Faz parte da nossa história esse desencanto do qual nem sempre nos recuperamos muito bem. Alguns seguem pela vida afora reclamando que os pais não estiveram à altura de suas expectativas. De qualquer forma, por mínimo que seja, sempre há um certo ajuste de contas a fazer com os pais. Com o nossos pais fundadores não é muito diferente. É nessa fresta que entram as piadas de português, rir deles é como rir dos pais, é tornar mais leve o fardo de ser seus filhos.

Piadas são tentativas de contornar os aspectos inefáveis da nossa identidade, origem e convívio. Elas são a tônica da nossa vida social porque o encontro entre os humanos se parece com uma pista de autochoque, há um mar subterrâneo de conflitos e estranhamentos que corre sob qualquer evento. Para essas inseguranças e pendências que sempre fazem parte do cenário, rir é o melhor remédio: já que elas se impõem, vamos falar delas sem que ninguém, nem nós mesmos, se dê conta.

Se a piada é a verdade ventríloqua, a nossa é que provavelmente temos que ser filhos de burros mesmo, para viver nesse país grande como um continente, com essa natureza paradisíaca e ter uma sociedade tão pobre, em todos os sentidos. Se algum Deus houvesse, ele poderia rir destes trouxas, que não precisaram ser expulsos do paraíso para viver no inferno, pois, como dizem, o inferno somos nós. E isso não é culpa dos portugas.

Aliás, sabe quantos brasileiros são necessários para estragar um país?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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