Reprovados em Delfos

Lições importantes são aprendidas ao se comparar declarações, idéias, teorias ou conceitos separados pelo tempo, que em certos casos podem chegar a séculos e, em outros, poucos anos e poucas décadas.

Na edição de agosto de 1999 da revista praga estudos marxistas (Editora Hucitec, SP), foi publicada uma das muitas entrevistas do sociólogo Francisco de Oliveira, mais conhecido como Chico de Oliveira, cuja carreira foi iniciada ao sair da universidade ao se tornar colaborador direto de Celso Furtado na organização da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), no governo Goulart e, anos depois como pesquisador do Centro Brasileiro de Análises Políticas (Cebrap), onde trabalhou por 25 anos, dirigido inclusive por Fernando Henrique Cardoso.

Foi também professor concursado da Universidade de São Paulo (USP) na cadeira de sociologia, na qual também presidiu o Centro de Estudos sobre Direitos da Cidadania (Cenedic), além de escrever vários livros sobre economia e política.

Um dos primeiros intelectuais a participar das discussões que resultaram na criação do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Chico valeu-se de sua sólida formação socialista para engajar-se sem reservas no projeto político-ideológico defendido pelo novo partido, fazendo inteira justiça à condição de intelectual de esquerda desde os tempos da colaboração com Furtado, que o convidara a fazer parte da equipe nos anos 60, no Recife, exatamente por essa característica.

Crítico contumaz do neoliberalismo – o país vivia o segundo mandato de FHC – na citada entrevista o sociólogo reconhecia a vigência do processo de democratização, mas via no caminho uma pedra que denominava de “destituição da fala”. E explicava: “O nó, a contradição implícita nessa conexão das formas aparentes da política (a armadura institucional) com sua ineficácia real, passa, certamente, pela destituição dos significados. Durante a ditadura, justamente por ser um regime de força, a desqualificação do adversário chegava a extremos, mas deixava implícito que havia uma força militar a sustentá-la. O caso agora é diferente. Trata-se de uma desqualificação sistemática do interlocutor, acusado de burro, de atrasado, de ter perdido o bonde da história etc. Hoje, mesmo no âmbito puramente intelectual, há uma pressão para destituir a fala do oponente”.

O ciclo militarista já estava no passado, mas Oliveira fazia questão de lembrar que mesmo em sua fase mais pesada, o sistema “não anulava a fala do oponente”, ressaltando que “os maiores programas de política social no Brasil, excluído o período varguista, ocorreram durante a ditadura militar, com o Banco Nacional de Habitação, o Estatuto da Terra etc”, a seu ver “tentativas, muitas vezes malogradas, de resolver a questão social” concluindo, entretanto, que “tudo isso, de certo modo, procurava responder às demandas da oposição” e, mais, ao esclarecer que o próprio movimento sindical de São Bernardo (SP) se fortaleceu a partir da brecha aberta por essa aparente contradição.

As considerações do sociólogo Francisco de Oliveira à publicação mantida pela Hucitec, em 1999, na vigência do segundo mandato de FHC, em plena expectativa pela chegada do PT ao governo da República como forma de resolver todos os problemas imagináveis, entre outras coisas propunham que “seguindo as pistas de Collor, mas muito mais articulado que ele no interior do campo burguês, FH Cardoso desencadeou um processo intenso de reorganização e reestruturação – mas também de destruição – da burguesia interna, implementando uma nova rodada de subordinação ao capital, agora mundializado e cada vez mais implacável”.

“Assistimos a um processo extremamente conflitivo, de uma violência sem paralelo, eivado de rapina e extorsão de toda sorte. Desprovido das mediações do espaço público, o governo perdeu o controle dessa intensa reorganização da classe dominante – processo iniciado por ele mesmo – tamanha a mudança desencadeada seja em sua estruturação interna seja em sua articulação externa”, acrescentou.

Oliveira ressaltava a mudança significativa da situação dos intelectuais, alegando a perda “em escala fantástica” da solidariedade em relação aos dominados: “O fato do atual presidente ser egresso desse grupo acelerou o processo de trânsito de classe dos intelectuais e a perda de solidariedade com os oprimidos. Sua ascendência sobre certas parcelas dessa camada não deixou de avalizar o abandono da identidade de esquerda. Seguindo o exemplo do presidente, alguns desafivelaram com gosto a máscara de esquerda que eram obrigados a portar. Isso também foi facilitado pela sua inserção nos aparelhos do Estado e na política”.

Nessa visão crítica do contexto, Oliveira diria ainda que FHC “jogou com a atração do brasileiro pelos intelectuais, com uma tradição na qual essa figura aparecia comprometida com a esquerda”, supondo que o então presidente “lançou a pá de cal nessa ideia de que todo intelectual é progressista, reformista e avançado”.

Rompendo com o PT e com o governo Lula em 2003, por óbvia quebra de sintonia com a série de equívocos cometidos pelo partido que se proclamava revolucionário e transformador, o sociólogo avaliava que “quando o PT se mete a gerenciar o capitalismo em sua fase financeira (que é o que ele está fazendo), é devorado pelo atraso, no sentido de negar as reivindicações da classe trabalhadora e a sociedade brasileira. Ele está sendo comido não pelas forças do atraso, mas sim pelas forças do progresso. É o progresso da acumulação, dominado pelo capital financeiro. É essa a contradição que eu encontro nessa decadência do PT como partido da transformação”. A declaração de Chico consta de entrevista concedida à revista Cult, em maio de 2005.

Chico não foi o único intelectual de prestígio a romper com o lulopetismo, creditando seu gesto de abandono ao fato de que o “PT não tem uma teoria para o Brasil”, isto é, a concepção da nova nação que deveria emergir das transformações do próprio capitalismo, a seu ver por demais poderosas, mas, em igual medida, quase impossíveis de serem entendidas pela esquerda.

Declarações mais recentes do sociólogo não conflitam com as veiculadas pela imprensa logo após o rompimento, quando se referia a Lula como “o pequeno Napoleão”, ou o personagem que pusera a perder todas as conquistas da Revolução Francesa. Qual foi a reforma do Estado feita pelo lulismo?, Chico pergunta para responder na bucha: “Nenhuma”.

Esclareço que o objetivo essencial desse ensaio não será inteiramente alcançado, levando o leitor à decepção se não se puder demonstrar com um pouco mais de veracidade a assertiva de que ideias, teorias e conceitos estão sujeitas a mudanças drásticas em reduzido espaço de tempo.

Meses depois da reeleição de FHC em 1998, com nova derrota do candidato Luiz Inácio, a mesma revista praga na edição correspondente a março do ano seguinte entrevistou Emir Sader, João Machado, Marco Aurélio Garcia, Milton Temer e Tarso Genro, apresentados como “formuladores intelectuais” com trânsito livre na alta hierarquia petista e, portanto, plenamente dotados de saber para a exposição de proficiente análise sobre o futuro imediato do PT. É impressionante observar como certas tramas e conceitos tornam-se ectoplasmas de si mesmos em pequenos intervalos de tempo.

Esses novos discípulos da escola de Delfos pintaram para a eventualidade de o Brasil ser governado pelo PT um porvir que faria inveja à Pasárgada, mas foram incapazes de arranhar sequer a epiderme da ruindade dos governos presididos por Lula e Dilma. Seriam implacavelmente reprovados.

Felizmente eles sobreviveram para testemunhar os danos colaterais causados à administração federal que acaba de entrar no 14º ano consecutivo nas mãos do PT, que a publicação da Hucitec classificava “como um embrião do grande partido de massas sempre almejado pela esquerda brasileira”.

Na época, ex-prefeito de Porto Alegre, Genro conceituava a eleição de FHC como fruto do enigma colocado diante de grande faixa do eleitorado, ou seja, entre a mediocridade do presente e a instabilidade do futuro: “Esse futuro instável seria o PT e a União do Povo. Preferiram a mediocridade do presente, pois ela dá mais segurança e tranquilidade. Essas são, para mim, as razões fundamentais da vitória de FH Cardoso”. Seria muito produtivo saber o que pensa hoje esse intelectual orgânico do PT, totalmente em baixa, diga-se, sobre o quesito mediocridade.

João Machado não teve o menor pudor ao definir a suposta relevância política de Lula como “um dirigente popular, que se projetou nacionalmente à frente de grandes lutas operárias, enfrentando a ditadura e os patrões, que violou a legislação da época e esteve preso. Um símbolo de rebeldia e da vontade de mudança da sociedade. Um homem perfeito para liderar um grande processo de transformação social, para despertar no povo a vontade de lutar”.

Transcorreram pouco mais de 15 anos e as mesmas palavras lidas hoje sem nenhuma intenção de menoscabo, causam-nos inevitáveis frouxos de riso.

O pensamento de Genro não se deixava cercear pelo bom senso: “Dificilmente o presidente Cardoso tomará as medidas necessárias para reverter o curso de integração submissa para inverter o modelo econômico atual. Por isso, sustento que a esquerda, desde logo, para se opor à possibilidade de ‘fujimorização’ do país, deve construir soluções institucionais democráticas, nos marcos da Constituição. Por exemplo, através de um processo eleitoral extraordinário, definido por uma emenda constitucional”.

O tema abordado por Genro era a crise econômica de então. Na mesma linha, talvez se arrogando a condição de vidente, João Machado prescrevia receita infalível para a crise: “Para começar, seria preciso acabar com a farra dos especuladores, centralizando e controlando o câmbio. Esta é a única maneira de recuperar alguma autonomia econômica”.

A receita ia adiante com uma concha de sal grosso, que ao derramar-se em igual medida para realçar os malfeitos dos governos petistas, é prontamente demonizada e tida como golpe pela militância agarrada ao casco do navio que afunda. Retirem as crianças da sala: “Para que isto seja possível, é preciso que o país tenha outro governo. O que aí está acabou de ser reeleito; mas para isto prometeu que não ia acontecer justamente o que está acontecendo. É perfeitamente natural questionar a legitimidade desta eleição. O ex-prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro, sugeriu que o presidente renuncie e se faça nova eleição. Seria sem dúvida o melhor para o país. Ninguém espera, contudo, que Fernando Henrique Cardoso dê uma demonstração de preocupação com o povo”.

Um pouco mais do verniz intelectual (golpista?) do petismo antes de chegar ao governo da República: “Só resta confiar que o próprio povo, à medida que vá percebendo mais claramente o que está acontecendo, crie um movimento que possa ter esse desfecho. Caso contrário, será preciso esperar quatro anos. E então, após muitos ‘sacrifícios’, o país estará mais endividado, espoliado e dependente do que hoje”.

É preciso concluir para não esgotar a paciência dos leitores, e para isto proponho uma comparação final entre o que regurgitava a dialética petista em 1999 e a praxis política que, em 2016, o partido faz das tripas coração para incinerar. Os direitos autorais pertencem a Tarso Genro: “O PT é um partido democrático de inspiração socialista, que surge no interior da crise do socialismo em escala mundial. Sua ideia e seu movimento político geral é promover transformações que gerem menos desigualdade, mais participação direta da cidadania, com uma intercessão autônoma e soberana do país na ordem econômica internacional. Sua relação com o socialismo, como generalidade abstrata, vem do fato de que ele é caudatário das correntes socialistas européias, social-democratas de esquerda, comunistas e cristãs revolucionárias, que se opunham ao modelo soviético e ao modelo chinês”.

O restante da frase será grafado em itálico: “É impossível dizer, porém, que o PT tem um modelo de socialismo acabado. Aliás, creio que avocá-lo, hoje, seria uma grande irresponsabilidade teórica”.

Creio que é o bastante para se compreender a situação de miserabilidade política do partido que em pouco tempo jogou ao fundo do poço todos os indicadores econômicos (que o digam as principais agências de classificação de risco), transformando o país em motivo de galhofa para o mundo desenvolvido.

ivan schmidt

Blog do Zé Beto

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Reprovados em Delfos e marcada com a tag , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.