Homem-Massa em ação

Ortega y Gasset escreveu A rebelião das massas. É complicado explicar teoricamente. Melhor você ler o livro. Mas, pra exemplificar, nada melhor do que pegar um homem-massa em ação.

Vou contar.

Vamos dizer que você jogue sinuca num clube. Quer dizer, você é sócio de um clube e joga sinuca lá com amigos que também são sócios. Todo clube tem suas regras, seu regulamento interno, seu estatuto. Quem entra deve, pelo menos em boa dose, seguir o que está escrito pro bom andamento da convivência. Existem clubes chiques que têm a famosa ‘bola preta’ que é dada a alguém que quer se associar, mas não preenche os requisitos do estatuto. Só que a democratização do mundo dá a qualquer um a chance de convívio em todo lugar. Por um meio ou outro o cidadão consegue entrar num clube e pronto. Isso não é ruim. Em tese, todos têm direito à vida, à liberdade, à busca da felicidade.

Só que muitos clubes se tornaram, por força da ascensão do homem-massa, muito mais receptivos. Tendo dinheiro, entra. Desse modo, mesmo num clube existem outros miniclubes. Quem joga sinuca, quem joga tênis, quem joga baralho, quem salta a cavalo, quem joga golfe. Cada miniclube tem, também, suas regras.

Aí, entra o caso que quero contar. Você está jogando sinuca com amigos. Só duas mesas, das nove, estão ocupadas. Entra um cara, com a mulher e uma criança, e, depois de olhar tudo, chega pra você e pergunta: — Como se faz pra jogar? Você explica: — Tem que ter seu próprio taco. Só isso. Ele te olha meio ressabiado. Aí, outro amigo diz: — Olha, tem duas mesas ali na sala ao lado e lá se pode jogar sem precisar taco próprio. Parece que foi tudo bem explicado, né? Aí, o cara sai da sala, com a mulher e a criança. Você e os amigos voltam a jogar normalmente. Passa um pouco de tempo e o cara volta, com a mulher e a criança. Só que dessa vez ele traz as bolas e os tacos da outra sala. Vem junto o cara que atende a sinuca. O cara com a mulher vai direto pra uma mesa. Você e seus amigos olham e tentam dizer pra ele que não se pode jogar com taco com ponta de plástico. Pode rasgar o pano. Pausa: os tacos devem ter sola (ponta) especial — a mais cara importada chega a custar cinquenta reais! O cara olha pra você e diz: — Vou jogar aqui com minha esposa. ALGUM PROBLEMA? Sou sócio e vou jogar! Pronto, apareceu o homem-massa. Desafiou as regras ameaçadoramente — ele poderia até partir pra briga, né? Na ameaça — ALGUM PROBLEMA? — estava incluída a possibilidade de agredir alguém pra fazer valerem seus ‘direitos’.

Você diz pra ele que não tem problema, está tudo bem. Criou-se um clima desfavorável. Ele arma as bolas e fica jogando. De vez em quando dá umas olhadas meio de provocação pra você e os seus amigos. Mais tarde, ele cansou e saiu. Um amigo vai atrás e tenta explicar pra ele e a mulher as regras da sala de sinuca. Eles ouvem como se tudo fosse de um outro mundo. Vão embora cientes de que estavam certos e que têm direitos iguais, mesmo que seja preciso entortar os direitos dos outros.

Eis o homem-massa. É aquele que vai jogar futebol-suíço e, quando dizem pra ele que só pode jogar de tênis, ele responde: — Vou jogar de chuteiras com travas de aço. ALGUM PROBLEMA? No trânsito ele é o rei do mundo. Fecha cruzamento, estaciona em fila dupla, em local proibido, no lugar dos idosos, não dá vez pra outro, buzina adoidado. Sempre ele — acima de tudo, antes de tudo, melhor que todos. E dá até tiro em alguém pra que isso aconteça.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em rui werneck de capistrano e marcada com a tag , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.