Reveses e versos: Cervantes

Lope de Veja, grande dramaturgo espanhol, em carta de 14 de agosto de 1604, comentou que não havia na Espanha poeta ‘tan malo como Cervantes’. E o próprio Cervantes reconhecia ser mais versado em reveses da vida do que em versos. Porém, o que ninguém sabia é que ele já trabalhava há tempos, durante uma de suas prisões inclusive, no Dom Quixote. Vivia em desesperada pobreza e total desesperança. “Dom Quixote é a história de um louco manso contada por um cínico delicado.” – escreveram Henry Thomas e Anna Lee Thomas no livro de biografias de grandes escritores.

Assim, já no ano seguinte, 1605, aos 58 anos, Cervantes deu à luz a primeira parte do Dom Quixote. O escritor acumulava desgraças pessoais e familiares sem conta. Porém, Dom Quixote aventurou-se derrubando moinhos, combatendo meliantes imaginários, sonhando com Dulcinéia del Toboso e fazendo leitores do mundo inteiro rirem a mais não poder.

Assim Cervantes se descrevia: “Um homem de barba prateada, grande bigode, boca pequena, dentes sem importância – apenas seis e estes em más condições e ainda pior dispostos porque os de cima não jogam com os de baixo”.

Nos dez anos seguintes, ele não escreveu mais nada de grande valor (apenas peças teatrais nunca encenadas e uma coleção de contos). Pode ser comparado ao nosso Macunaíma que vivia dizendo “ai que preguiça!”

A segunda parte do Dom Quixote (“Mistura de uma descabelada loucura com uma sabedoria sóbria.”) pedia para ser escrita, mas encontramos Cervantes miserável, vacilante e preguiçoso. Ele talvez nunca a tivesse concluído se não houvesse aparecido a continuação – obra de um impostor que se assinava Avellaneda. Apressando o burrico, Cervantes deu a nós a segunda parte em 1615. E foi no ano seguinte que ele saiu de cena. Foi combater moinhos de ventos lá nos píncaros do céu.

*Rui Werneck de Capistrano é construtor de moinhos de vento.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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