Rui Werneck de Capistrano

Suponhamos que você descubra que, quando ameaça chover, o papagaio-grego, indeciso, troca de roupa três vezes antes de sair de casa. Ou que o sapo-cururu é apenas um pleonasmo anfíbio anuro, pois em tupi-guarani cururu quer dizer sapo. Pronto, você já é um serendipitoso. O que é isso é outra história. Pra que serve, idem. Não adianta correr ao dicionário, pois você só vai se cansar à toa. Deixe pra correr na esteira da academia. Os fazedores de dicionário não são, eles mesmos, serendipitosos. Até o dicionário do Word do PC sublinha em vermelho. Porém, essa palavra está escrita no livro Fama e Anonimato, de Gay Talese. Um ‘verbete’, lá mesmo no livro, explica que serendipitoso é aquele que faz descobertas, por acaso, felizes ou úteis. No caso do papagaio-grego seria apenas feliz. No caso do sapo-cururu é útil. Um outro caso útil — posso citar de cadeira — seria a descoberta, durante a criação de um anúncio de produto, de alguma qualidade extra — não sugerida no briefing. Não confunda com insight — estalo criativo. É uma qualidade concreta que o produto tem e que ninguém se deu conta antes. E que, se anunciada, vai trazer mais retorno.

Gay Talese foi um dos pilares do New Journalism nos Estados Unidos. Vá ao Google e confirme. Aqui importa é saber que em tudo se pode achar mais novidades — úteis ou inúteis pra uso em ocasião propícia. Gay Talese é craque nisso. Ele descobriu que os moradores de N. York piscavam 28 vezes por minuto, que as pessoas que desciam por uma escada-rolante, mascando chicletes, paravam momentaneamente de mascar quando chegavam no último degrau, que nas três mil salas do Empire State Building, as faxineiras encontravam mais ou menos cinco mil dólares por ano. Ele recheava seus textos com essas descobertas e agradava sempre.

Gay Talese nasceu em 1932, escreveu centenas de reportagens e aprofundou alguns materiais em livros. Os mais conhecidos são A mulher do próximo e O reino e o poder. Além do Fama e anonimato, no qual estão reunidas suas primeiras reportagens e, serendipitosamente, ficamos sabendo que, lá por 1960, N. York tinha 780 mil nomes na lista telefônica — 3277 tinham sobrenome Smith — 2811, Brown — 2446, Williams — 2073, Cohen. Por dia, se consumia um milhão e setenta e quatro mil de litros de cerveja e 90 mil pessoas discavam WE 6-1212 pra saber que tempo ia fazer. É preciso ver que essas e outras não são apenas informações. Os achados abriam passagem pro assunto da reportagem, dando credibilidade ao jornal e mostrando que o autor ‘sujou os sapatos’ — foi à rua, camelou.

Ele fazia seu trabalho sem anotar nada — ou apenas eventualmente — e sem usar gravador nas entrevistas. Convivia com os entrevistados e com os personagens das reportagens. Hoje se faz entrevista por e-mail ou telefone!

Gay Talese estreou na Esquire em 1960 com uma reportagem sobre pessoas anônimas de N. York. Em 1961, produziu um livro ilustrado com os fatos estranhos e bizarros de suas descobertas. O livro se chamou A serendipiter’s journeyNew YorkNova York – a jornada de um serendipitoso. Fui ao dicionário inglês/português e — pasme! — não tem a palavra.

Bem legal em Fama e anonimato é a reportagem que Talese fez tentando entrevistar Frank Sinatra, em 1965. Sinatra estava resfriado e às voltas com uma acusação de ligação com a máfia. Sinatra resfriado era como uma Ferrari sem combustível — um cantor famoso sem voz. E a acusação…

Talese não conseguiu a entrevista, mesmo seguindo todas as pistas do braço direito do cantor. Aí, em vez de se acomodar, enquanto “The Voice” se recuperava, ele foi atrás de todas as pessoas que serviam o cantor de alguma forma — músicos, maquiadores, chefes de estúdio, etc. O resultado, mesmo sem a entrevista, foi a reportagem Frank Sinatra está resfriado — considerada a melhor dos setenta anos da revista. Ele fez até o making of da reportagem contando que gastou cinco mil dólares, da Esquire, em hospedagem, comida, bebidas e mimos durante a reportagem. Uma grana absurda pra época!

Então, fica aí serendipitoso, pra quem quiser usar. Ou não usar. Ou ousar, usar e abusar.

É autor de Nem Bobo Nem Nada, que você, se não tiver grana, pode emprestar da Biblioteca Pública do Paraná

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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