Schopenhauer debaixo da cama – 2011

Não confunda Schopenhauer com Shopping Hauer. Ou, confunda. Tudo é consumo. Hoje acordei e toquei o Schopenhauer que estava dormindo embaixo da cama. Cabisbaixo, ele me confessou: — Quanto à vida dos indivíduos toda biografia é uma história de sofrimento; porque, em regra, toda existência é uma série contínua de malogros, grandes e pequenos, os quais, é verdade, a gente esconde o mais possível, porque se sabe que os outros raramente se interessam ou se apiedam, mas…

— Peraí, interrompi nervoso, se diz que os outros raramente se apiedam, porque eu deveria escutar isso?

Ele não se importou e continuou— mas, quase sempre mostram satisfação, ante o relato de sofrimentos de que nesse momento estão isentos; — Ah, agora sim, concordo! Continue — mas, jamais talvez, ao fim de sua carreira, de posse de toda sua razão e sendo sincero, deseje o homem recomeçá-la; — Ops, sinceramente, discordo. Começar de novo deu até música! Vá adiante — (…) Se fizéssemos o mais obstinado dos otimistas percorrer os hospitais, lazaretos e salas de operação cirúrgica, os cárceres, as câmaras de tortura e as senzalas dos escravos, se o conduzíssemos aos campos de batalha e aos locais de suplício, se o fizéssemos penetrar em todos os sombrios redutos onde a miséria se enfurna subtraindo-se aos olhares da vadia curiosidade, se, — Calma aí! Que frase, heim? Porrada! — enfim, o fizéssemos lançar um olhar para a torre de Ugolino esfomeado, por certo ele mesmo compreenderia, afinal, de que natureza é este “melhor dos mundos possíveis”. — Bem, acho que a gente já passeia por todos esses lugares só andando pelas ruas de uma cidade grande. Aqui, um mendigo debaixo da marquise. Ali, um esfarrapado doente e mutilado. Mais pra lá, um seminu besuntado andando de bicicleta. Cada um de nós tem uma couraça protetora. Se ela não existisse, nós choraríamos, nos descabelaríamos e cairíamos prostrados diante de cada ser humano em condições miseráveis. Seria um desespero sem-fim. A nossa natureza nos deu uma proteção extra. Hiii! Já estou vendo leitores se abanando e deixando o recinto.

E assim fui discutindo com meu cão Schopenhauer. Chope para os íntimos. Ele com seu soturno olhar canino e eu com vontade de ir pra rua ver a multidão indo e vindo.

Estranho, depois de ficar duas horas lendo na Biblioteca, saio à rua e não entendo a gentarada toda indo e vindo. Não vejo sentido, não sei pra onde estão indo, o que pensam, de onde vieram. Só vejo corpos, roupas, roupas, corpos, roupas, cabeças baixas, roupas, pacotes, poucos rostos e nada de olhos nos olhos. Schopenhauer saiu comigo, mas se perdeu no meio do povão e nunca mais voltou pra casa. Acho que foi levado pela última enchente. Ou… você teria alguma notícia dele?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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