O malabarista: Roman Gary

Romain Gary nasceu Romain Kacew, na Lituânia, passou para Romain Gary, na França, e se misturou com Émile Ajar, Fosco Sinibaldi e Shatan Bogat, René Deville e Lucien Bruûlard. Tudo isso de 1914, quando nasceu, até 1980, quando se suicidou e deixou diversos bons livros de herança para todo mundo — que gosta de ler, claro.

É engraçado ler um super-resumo da vida de um autor na orelha da contracapa de um livro. O da vida de Romain Gary não foge à regra. Ele fez tanta coisa em vida que fica patético um resumo. Mas é o que cabe na orelha de um livro. Eu não tinha lido nada dele — só fui atrás porque uma moça chamada Mirella comentou meu texto sobre o Prêmio Goncourt. E, para mim, livro puxa livro puxa livro.

Fui à BPP e achei alguns livros dele — As pipas, O último suspiro, Lady L, Promessa ao amanhecer. Folheando, decidi pelo último. Foi lançado em 1960 e conta a própria história do autor — uma espécie de autobiografia romanceada. Na capa tem ele — menino — e a mãe. Na contracapa, outra foto com a mãe. Isso já diz tudo. Você deve conhecer a piada da mãe judia que mostra a foto de dois filhos bem pequenos e diz esse aqui é o Dr. Leon Wessel e o menor é o Físico nuclear, Boris Wessel.

A mãe de Romain era igual, igual — judia e com um amor desmesurado pelo filho. Ela o chamava de meu Victor Hugo, meu Prosper Merimée, meu Goethe — quando ele tinha uns doze, treze anos. E isso se repetia a cada tentativa do menino de fazer algo — meu Nijinsky, meu Gabriele D’Annunzio, meu embaixador da França. Tudo isso repetido em voz alta, em qualquer situação, diante de todo mundo. Para mortificação generalizada do guri. Ela fez um pacto de amor maternal de grande potência que perseguiu, motivou e guiou Romain pela vida inteira dele — e até depois da morte dela. Ele fez todos os planos de vida baseados na expectativa do coração da mãe. Iria voltar para casa, um dia, coberto de louros, medalhas e conquistas.

Formavam uma família de mãe e filho — o pai ele só viu depois de grande. Morando com ele na Polônia, a mãe sonhava com a França — vida boa, cidadania, trabalho, conquistas. Vive la France! Depois de 330 páginas, tendo a Segunda Guerra Mundial como paisagem quente, Romain Gary conseguiu realizar grande parte dos sonhos da mãe — partiu para a guerra na aeronáutica, escreveu livros de sucesso — com Raízes do céu ganhou o cobiçado Prêmio Goncourt em 1956, se tornou cônsul-geral da França em Los Angeles (EUA), fez dois roteiros de filmes, casou com a atriz Jean Seberg, recebeu Cruz de Guerra, a fita verde e preta da Libertação — colocada em seu peito pelo General De Gaulle, mais a medalha da Legião de Honra e alguns ferimentos de guerra.

Dei o melhor de mim — era seu mote. Em favor do sonho da mãe — acrescento. No livro Promessa ao amanhecer, ele minimiza um pouco todas as conquistas porque não foram muito bem projetadas. Resultaram das idas e vindas da vida, do calor da luta, do bate-rebate.

A mãe, sim, foi uma heroína. Distante dele, ela conseguia mandar cartas regularmente — motivação, ânimo e renovadas esperanças de vitória em tudo! Qualquer comunicado dele, de algum feito, era alardeado por ela em toda a vizinhança, com certeza, na cidade inteira, se precisasse. E no mundo, se desse.Quando ele finalmente voltou para casa, com o produto das conquistas, soube que ela havia morrido apenas três anos e meio depois da partida dele com o exército! Ela havia escrito antecipadamente mais de duzentas cartas e encarregou alguém de enviar para onde quer que ele estivesse. Uma heroína! O torrencial amor materno venceu? Ou o matou para uma vida “normal”? Seja como for, Romain Gary deixou esse livro que acho muito importante. E, quando já estava com quase setenta anos, ele resolveu escrever sob pseudônimo — Emile Ajar — para que ninguém notasse, nos seus verdadeiros escritos, a decadência. O que conseguiu com isso foi mais uma indicação para o Prêmio Goncourt. O prêmio nunca é dado mais de uma vez a um escritor. Só descobriram que Emile Ajar era Romain Gary seis meses depois do seu suicídio. Curioso é que ele e a mãe passavam dias — quando ele era um piazinho — tentando achar um pseudônimo à altura do enorme talento do meu, segundo a mãe, Victor Hugo

Um trecho de Promessa ao amanhecer: “Fazia frio. Eu escrevia de noite na cabana de teto de zinco que partilhava com três companheiros; eu punha meu casaco de voo e minhas botas, instalava-me na cama e escrevia até o amanhecer. (…) “Terminei Éducation Européene, enviei o manuscrito a Moura Boudberg, amiga de Gorki e H. G. Wells, e não ouvi mais falar dele. Certa manhã, ao retornar de uma missão particularmente mais animada — fazíamos então saída de voos rasantes, a dez metros do solo, e três companheiros foram à lona — encontrei o telegrama de um editor inglês anunciando-me sua intenção de traduzir meu romance e publicá-lo o mais rapidamente possível.”

O neologismo — malabartista — do título fica por conta de quem for ler Promessa ao amanhecer. Só assim para descobrir.

*O malabartista Werneck não é bobo nem nada

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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