Rui Werneck de Capistrano

CLICHÊ-dois

Estou preocupado com a classificação de fragmentos rechaçados de culturas falidas ou obsoletas. Recolho tudo como se fossem pequenas conchinhas sem defeito que o mar atira na praia. Ponho-as por ordem de tamanho sobre a mesa. Enredo-me com frangalhos e espanto o frio da alma com uma taça de vinho tinto das palavras. Quero entender que a palavra símbolo vem do grego symballein que quer dizer “jogar juntos” e que uma chaleira só não faz verão. As coisas isoladas não são símbolos. A escrita chinesa sempre associa coisas para que tenham valor de símbolo. Um pássaro não simboliza liberdade, mas um pássaro na gaiola simboliza prisão. Toda cultura já produzida está desenterrada, fedendo à flor da terra. Cheiramos Idade Média e comemos Iluminismo. Basta abrir a geladeira e temos tudo à mão: de Darwin a Lewis Carroll. O centro está em todas as partes e as margens não estão em lugar nenhum. Procuramos o elo faltante da nossa vida para nos tornarmos símbolos de alguma coisa maior. Trabalhamos na recuperação, reavaliação e reaproveitamento de todas as civilizações numa simples escolha de um tecido na loja.

Acho que já cansei do monólito, do fechado, do sólido. As migalhas caem sobre nós, os resíduos nos habitam, os retalhos nos vestem. Um punk comendo x-salada. Um xavante ouvindo tecno-pop. Tudo o que está ao nosso alcance se converte em nossa extensão para chegar ao plenimundo. Na linguagem, a mistura se acentua ao escrevermos lava car com jet espuma ou happy hour com petiscos. Uma tentativa da expressão total em linguagem coloquial. Apreender tudo para não ficar fora de sintonia. Dizemos tranquilamente faça um full banner para hot site e vamos tomar um café. O grande liqui-dificador do mundo moderno está ligado — tá ligado? — na mais alta rotação. Somos ou não apenas farrapos humanos? Nossas reações ancestrais diante de situações super-hiper-mega-modernas não devem nos constranger. Vestidos a rigor, ainda nos arrepiamos numa rua escura se ouvimos passos perfeitamente humanos atrás de nós.

RUI-19

Rui Werneck de Capistrano masca clichês e chicletes.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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