Laurinda, Olivia e Adquira

Ruy Castro – Folha de São Paulo

Há tempos (“A pranteada senhora”, Painel, 4/11/2018), falei aqui de como, ao ler os anúncios funerários do “Globo”, pensei ver a comunicação do falecimento de uma senhora chamada Adquira Carneiro Perpétuo.

Não sabia quem era, mas aqueles sobrenomes me diziam alguma coisa —talvez fosse a mãe de um antigo colega de faculdade ou amigo. A curiosidade aumentou quando, pelas semanas seguintes, sucessivamente, o anúncio voltou a sair— e não eram convocações para a missa de sétimo ou 30º dia. Era como se dona Adquira morresse toda semana e cada morte justificasse um anúncio.

Na época, por falta de espaço, não pude falar sobre a curiosidade que seu nome me despertou. Adquira Carneiro Perpétuo me lembrava Laurinda Santos Lobo, protetora das artes no Rio dos anos 1910 e 1920 e por cujo “salon”, em Santa Teresa, passaram Caruso, Nijinsky, Isadora Duncan e outros grandes do canto e da dança. Lembrava-me também Olivia Guedes Penteado, sua correspondente paulista, que vivia arrastando Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral para banquetes pela Europa antes que eles aderissem à antropofagia.

Donas Laurinda e Olivia eram mulheres ricas, finas e com paixão por artistas. A cultura brasileira lhes deve muito. Eram de um tempo em que alguns membros da nossa elite reservavam parte de seus ganhos para contribuir para o aprimoramento nacional. Talvez dona Adquira estivesse nesse caso.

E só então caiu-me a miserável ficha. Não havia nenhuma dona Adquira. Alguém estava apenas oferecendo pelo jornal um carneiro perpétuo no Cemitério São João Batista. E dava até o valor: R$ 60 mil. Só sei que, desde então, o carneiro deve ter sido adquirido, porque o anúncio nunca mais saiu.

Se, sem querer, contribuí para esta venda, tudo bem. Mas eu preferia que dona Adquira tivesse existido.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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