Sessão da meia-noite no Bacacheri

Don't-come-knocking-(2005)Howard Spence (Sam Shepard) já teve dias melhores: antes um protagonista dos westerns, agora ele só consegue papéis secundários e leva uma vida autocentrada, afogado em álcool, drogas e jovens mulheres. Até que um dia sua mãe revela que ele tem um filho (ou filha, não se sabe ao certo) desconhecido. Howard vê nisso uma razão para remontar ao passado e, a partir daí, conviver melhor com o presente. No seu caminho estarão um velho caso de amor, um jovem casal, uma estranha e desconhecida garota e até mesmo um “caçador de recompensas” enviado pelo estúdio de cinema que ele abandonou no meio de uma filmagem.

Quando realizou Paris, Texas, Wim Wenders acreditava que o cinema havia se tornado uma atividade difícil. Toda beleza possível nasceria de um sofrimento – o sofrimento de fazer cinema em meio à sua morte. Nick’s Movie, O Estado das Coisas, O Amigo Americano: o cinema deixou de ser o espaço dos mitos, virou depósito de zumbis. O encantamento do filme se dava à revelia, através dessa dificuldade mesmo diante das formas mais antigas do cinema – levando o cineasta a construir o mais complexo dispositivo somente para encenar um campo-contracampo (o jogo de luzes e reflexos na cabine de peep show ao final de Paris, Texas). Mas vieram os anos 90 e o cinema se reinventou sem tomar o passado como assombração.

Wenders, contudo, não sobreviveu à sobrevivência do cinema. Continuou apostando na desafecção de seus signos, assim como na distância assexuada instalada entre os homens. Ou no contrário: deslumbramento com as distâncias encurtadas virtualmente. Wim Wenders tornou-se um filósofo raso, além de um cineasta sem vontade de cinema. Antes ele citava seus mestres, aludindo à história do cinema que pesava sobre seus ombros e o fazia demorar a ir adiante (uma vez que a perfeição da forma clássica já fora atingida por Ray, Ford, Hawks, Walsh e a capacidade de experimentar se exaurira com o cinema moderno). Agora que a melancolia se transfigurou em rancor – de ex-queridinho dos júris de festivais e dos críticos a motivo de paródia, ele não apreciou em nada a mudança –, Wenders cita seus próprios filmes: a meia vermelha que Sam Shepard usa em Don’t Come Knocking já é uma citação menos a Nicholas Ray do que a Nick’s Movie.

Um olhar para os últimos dez (talvez quinze, talvez vinte) anos da carreira de Wenders é desanimador: o Asas do Desejo para dummies de Tão Longe Tão Perto, o panoptismo pueril de O Fim da Violência, o angelismo noir de O Hotel de Um Milhão de Dólares, a derrisória busca de uma nova inocência da imagem sob o céu de Lisboa… O novo filme de Wenders tem até um enredo que propõe um retorno a Paris, Texas (roteiro também de Sam Shepard), mas sem a poesia crepuscular que existia em 1984. Don’t Come Knocking traz só as migalhas de um cinema que se ressente da ausência de uma família. Pois se o pai que Wenders adotou é Nicholas Ray, é Yasujiro Ozu (Tokyo-ga), quais serão seus filhos? Há até uma fraternidade possível, por exemplo, em Flores Partidas, também uma jornada do pai em busca do filho. Mas Wenders reconhece, menos triste e mais pateticamente, que seu cinema não está cultivando seguidores. Don’t Come Knocking é a constatação rancorosa da falta de descendentes. Por isso Howard Spence (Sam Shepard) precisa abandonar o set de filmagem de um western à moda antiga – pastiche de uma Hollywood que nem mais existe – partindo a cavalo pela paisagem rochosa do oeste americano. O filme começa quando o cinema acaba (O Estado das Coisas, ainda): a deambulação embriagada e desmotivada é a forma de ficção que Wenders primeiro concebe. O personagem precisa sair de um certo estado cataléptico para voltar à vida.

Tudo se desenvolve de forma muito óbvia: um ator decadente abandona o set de um filme chamado Phantom of the West e visita a mãe (Eva Marie Sant) que não via há trinta anos, retornando à sua pequena cidade movida a álcool e luzes de cassinos. A mãe de Howard fala de um filho que ele não conhece, que possivelmente nasceu após seu caso com Doreen (Jessica Lange, surpreendentemente em má atuação). Howard parte à procura dela, que lhe mostra o filho, Earl, cantando num bar na cidadezinha em que a narrativa se instala – dando o clima off country do filme. No meio do caminho surge Sky (Sarah Polley – boa atriz, mas personagem risível, quase um alívio cômico em suas aparições sempre carregando a urna com as cinzas da mãe recém falecida), que logo se percebe ser uma outra filha que ele ignorou, e que perambula pelo filme como um anjo onipresente. Para os filhos, Howard é apenas um fantasma – e continuará sendo, após sair algemado no final por Sutter (Tim Roth), vilão fastidioso, agente da seguradora que o persegue como se fosse um fugitivo de presídio, para garantir que o contrato do filme não seja quebrado (subtrama que reinveste toda a fragilidade do filme).

Como em outras ocasiões, Wenders quer aqui reconciliar o mito com o homem, a paisagem monumental com a cidadezinha prosaica, a ficção familiar com o individualismo moderno. A memória do parente sumido não se constrói desta vez por arquivos em super-8 ou imagens de vídeo, mas por uma coletânea de recortes de jornal e revistas noticiando os escândalos em que Howard se metia, que foi o que a mãe dele guardou sem muito orgulho. A partir disso, está preparado o terreno para um novo aprendizado pelo erro, e para uma nova catarse pela sua admissão tardia. O restante de Don’t Come Knocking, dilatado e filmado com a gratuidade de uma câmera capaz de rodar em volta de Sam Shepard do meio da tarde até o anoitecer, parece apenas a espera indiferente pelos créditos finais. Wenders precisa urgentemente desfibrilar o coração do seu cinema.

ContraCampo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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