Somos otários de todos

No dia 8/4, o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) tomou a palavra na Comissão Especial do impeachment. Mostrou (mais uma vez) que esse impeachment não tem tanto a ver com as pedaladas fiscais, por mais que fossem enérgicas, quanto com o descontrole, a incompetência e a corrupção no partido de governo.

Até aí, tudo bem. Mas, criticando a política educacional do PT, o deputado produziu esta pérola:

“É a receita de Gramsci, da hegemonia cultural, e da escola de Frankfurt, da doutrina de gênero, numa tentativa de destruir a família”¦”

Mamma mia. Deputado, Gramsci não distribuía receitas. Nos cadernos que ele preencheu no fundo das prisões fascistas, ele registrava suas tentativas de entender como funciona o mundo.

A “hegemonia cultural” não é uma estratégia que Gramsci proporia ao partido comunista; ao contrário, trata-se de um conceito para tentar entender como, em cada momento da história, a classe dominante produz e impõe à população um conjunto de ideias e crenças.

Entender como funciona a hegemonia cultural talvez nos permitisse nos livrar (um pouco) dela, ou seja, descartar a visão do mundo sugerida pelos preconceitos mais triviais das “elites”.

O incrível parágrafo do deputado Marinho é um bom exemplo da retórica da hegemonia cultural. A família sequer é um valor cristão, sua idealização faz parte de um projeto de gestão de nossas vidas –por exemplo, o dos vários movimentos “Tradição, Família, Propriedade”. Marinho convida seus ouvintes a defender a família para que, combatendo o PT e Gramsci etc., eles aceitem a família como um pressuposto e se esqueçam de criticar esse valor.

Vamos à frase seguinte de Marinho, a “doutrina de gênero da Escola de Frankfurt”. Aqui, evito os detalhes, porque sinto um pouco de vergonha alheia. Com o que se apavora o deputado? Com a ideia de que o gênero poderia ser uma construção social e não só um efeito do sexo anatômico? Ou ainda com a obviedade de que alguém pode se sentir pertencendo a um gênero que não corresponde ao seu sexo anatômico? O que propõe o deputado: exterminar essas pessoas? Segregá-las para que ele não se sinta ameaçado em suas certezas?

Mais uma coisa: não existe uma “doutrina de gênero”, salvo a dos que querem nos convencer de que só há dois gêneros e eles devem corresponder ao sexo anatômico de cada um (mais um exemplo de hegemonia cultural, aliás).

A frase do deputado Marinho não vale essa resposta toda. De onde vem minha irritação? É que pertenço, há tempos, à classe dos otários, e isso começa a me irritar.

É uma classe média, remediada (enriquecer não está no topo da lista), alguns são marxistas, outros liberais, mas o essencial é que todos são frequentadores de cinemas, teatros e livrarias, geralmente laicos e agnósticos em matéria de religião, desprezam os moralistas, desconfiam das agremiações que ferem a liberdade individual e promovem ideais de justiça social e de convivência social-democrata.

Você se reconheceu?

Não tem um partido que nos represente. A Rede? Só se Marina nos escrevesse uma carta jurando que ela governaria sem o apoio da bancada evangélica. O PSDB? Rogério Marinho é do PSDB, João Campos também é, com sua moção de repúdio ao “beijo gay” nas novelas.

O PT, por não ser um partido marxista, poderia representar uma boa parte dos nossos. Seriam seus “companheiros de caminhada”.

Claro, veio o mau governo. Mas já éramos os otários da caminhada.

O governo sempre preferiu comprar a amizade de Maluf, Malafaia etc. a respeitar quem tinha depositado nele suas esperanças de uma sociedade melhor.

O pressuposto, suponho, era que nós reconheceríamos a necessidade das alianças e continuaríamos apoiando o partido, sem precisar que ele respondesse aos nossos anseios.

E o resultado foi o abandono de qualquer agenda libertária e progressista. Um exemplo? Em 14 anos, o governo foi incapaz de introduzir sequer a discussão de um projeto de descriminalização do aborto. O medo de comprar brigas e de perder apoios falou sistematicamente mais alto.

Alguém dirá que isso seria arriscado demais num país católico como o Brasil. A Itália e a Espanha também eram.

Outros dirão que a agenda libertária é coisa para país nórdico. Concordo, nórdico, como o Uruguai.

contardo-calligarisContardo Calligaris – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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