Estamos nos tornando prisioneiros da atenção

Peça de teatro provoca reflexão sobre a angústia na era dos humanoides e dos algoritmos

Na semana passada fiz minha estreia no teatro. A convite da MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo) fiz a voz de um robô no espetáculo chamado “O Vale da Estranheza“. Não precisei subir no palco, nem nenhum outro ator precisou.

O palco era ocupado apenas por um humanoide articulado, cuidadosamente forjado para se parecer com o escritor alemão Thomas Melle, autor do texto. Durante 60 minutos o robô faz uma conferência sobre o estado atual da tecnologia, usando para isso a biografia de Alan Turing, inventor da computação moderna, e a história de vida do próprio Melle.

No meio da peça, o robô articulado tem ataques de pânico e síncopes nervosas, derivadas da condição maníaco-depressiva do seu autor. Além disso, faz uma reflexão poderosa sobre nosso fascínio com a tecnologia e como ela se tornou uma maçã envenenada (Alan Turing se matou comendo uma maçã mergulhada em cianeto). Precisei recriar tudo no português, experiência dolorosa.

A razão é que a peça do grupo Rimini Protokoll toca em pontos capazes de perturbar qualquer pessoa. Thomas Melle, por exemplo, projetou no robô toda sua condição mental de depressão-maníaca. No entanto, o robô que está no palco reproduz essa condição – essencialmente huamana – como parte de sua programação pré-determinada. Em toda sessão ele terá as mesmas reações.

O público da peça também se comporta dentro de um script. Ri das partes com humor, faz reflexões nas partes mais meditativas e aplaude quando a peça termina. Aplaude quem ou o que? Por fim, se aglomera ao final, com o robô já desligado, para tirar fotos dele, agora inanimado.

A forma como essa dualidade entre programação e aleatoriedade (ou sistema e organismo) é retratada na peça é incômoda. O robô zomba o tempo todo do público que se identifica com ele e com seus sofrimentos, mesmo quando ele expõe de forma explícita suas engrenagens e sua artificialidade.

Esse é o ponto mais poderoso da peça: a forma como ficamos facilmente fascinados com nossas próprias ferramentas. Como elas são capazes de capturar nossa atenção, até mesmo em uma peça de teatro interpretada por um robô. Ninguém saiu da peça criticando se o robô era “bom ou mau ator”, nem cogitou analisar se a “direção” dele estava correta.

Podem ter criticado a minha voz na recriação das suas falas, porque minha voz é humana e por isso criticável. Já a máquina paira acima. É poupada dessas análises mundanas. Ela apenas fascina e captura a atenção.

É aí que mora o perigo. Georges Bataille escreveu em 1950 que “a atenção é sempre um esforço, uma busca por resultado. Ela é uma forma de trabalho”. E mais: “A atenção não é jamais contemplação: ela nos captura no desenvolvimento de um indefinido, servidão sem fim”.

A tecnologia da informação hoje cumpre esse papel. Ela é um sorvedouro gigantesco da atenção individual. Seu objetivo é simples: capturar toda a atenção de cada indivíduo de forma permanente e incessante, sem deixar qualquer brecha ou respiro. Isso pode até servir como uma forma de anestesia, mascarando manias e depressões, mas o preço cobrado é muito elevado. É o preço descrito por Bataille.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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