Com Deus à mesa do café

Um tema tem sido recorrente nas reuniões semanais dos velhinhos ex-Tribunal de Justiça no café do Vicente. Explico: o café não é do Vicente, mas, como ele é o concessionário da lanchonete Doce Fado e é uma honra ser atendido por ele, dizemos que não só o café, mas todo o espaço é dele.

Como eu dizia, antes da necessária explicação, um tema tem sido recorrente nas reuniões semanais dos velhinhos do Judiciário, no 3º andar do Shopping Pátio Batel: Deus. E o motivo é fácil de entender: todos já passaram ou estão próximos dos 70 anos de idade. E o futuro, que já não temos, causa-nos curiosidade. O que virá a seguir? Tudo? Ou nada?

O mistério nos comove e assanha o raciocínio. As opiniões se dividem, ainda que sejam apenas suposições. E não adianta fazer aquele pacto de que quem for primeiro dará um jeito de avisar como é. Pessoalmente, já fiz esse acordo com pelo menos meia dúzia de pessoas. E nenhuma delas deu, até agora, nenhum sinal.

Para Rubem Alves, que já havia se iludido e se desiludido com a religião, mas que era sábio e sabia dizer coisas bonitas, “Deus é um espelho no qual a imagem da gente aparece refletida com as cores da eternidade”. Mas, de igual modo, dizia que “acreditar em Deus não vale um tostão furado”. E isso com base no apóstolo Tiago, que deixou escrito em sua epístola sagrada: “Tu acreditas que há um Deus? Fazes muito bem. Os demônios também acreditam. E estremecem ao ouvir o seu nome” (Tiago, 2,19).

No entanto, valendo-se da ontologia de Riobaldo, de “Grande Sertão Veredas”, acha que Deus tem de existir, porque tem beleza demais no universo, e essa beleza não pode ser perdida: “E Deus é essa Vazio sem fim, gamela infinita, que pelo universo vai colhendo e ajuntando toda a beleza que há, garantindo que nada se perderá, dizendo que tudo o que se amou e se perdeu haverá de voltar, se repetirá de novo”. E Rubem Alves arremata: “Deus existe para tranquilizar a saudade”.

E ganha o apoio de Guimarães Rosa, ainda pela boca de Riobaldo: “Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve”.

Sei que o saudoso Rubem acreditava em Deus, do jeito como acreditava nas cores do crepúsculo, do jeito como acreditava no perfume da murta, do jeito como acreditava na alegria da criança que brinca, do jeito como acreditava na beleza do olhar que lhe contemplava em silêncio. Para ele, tudo isso era um pedaço de Deus. Como, então, não acreditar Nele?

Sei, também, que estas considerações pouco servirão na sequência do debate no cafezinho do Vicente na próxima sexta-feira. Por isso, peço licença para reproduzir parte de outra crônica de Rubem Alves, em que um pai tem uma conversa teológica com o filho:

– Pai, por que é que nós vamos na igreja?

– Porque a igreja é a casa de Deus.

– Mas as igrejas são muitas. Qual delas é a casa de Deus? Ninguém pode morar em muitas casas ao mesmo tempo.

– Deus pode. Ele mora em todas as casas ao mesmo tempo.

– Ele mora inteiro em cada uma delas?

– Mora inteiro. Deus não tem pedaços.

– Se a igreja é a casa de Deus, quer dizer que fora na igreja Deus não mora?

– Não. Deus mora em todos os lugares.

– Também na lua e nas estrelas, nas montanhas e nos desertos?

– Sim. Também na lua, nas estrelas, nas montanhas e nos desertos.

– E na nossa casa? Deus mora lá também?

– Na nossa casa, Deus está sempre.

– Se Deus está sempre na nossa casa, na lua e nas estrelas e nas montanhas e nos desertos, então todo lugar é casa de Deus. Se todo lugar é a casa de Deus, por que é preciso ir à igreja para encontrar Deus?

– Na igreja Deus é mais poderoso.

– Então, há lugares em que Deus é mais poderoso e outros onde é menos poderoso?

– Sim.

– Eu pensava que Deus era forte sempre, igual, na lua, na rua, na igreja, na favela, nas prisões. Deus está também nas prisões?

– Deus está em todos os lugares. Também nas prisões.

– Se Deus é tão forte e pode fazer tudo o que deseja, por que ele não faz os maus ficarem bons?

– Isso eu não sei…

– Eu gostaria que Deus estivesse com a mesma força em todos os lugares. Ele não poderia ter evitado o tsunami, os furacões, os terremotos, a corrupção? Eu vejo, na televisão, homens corruptos rezando e fazendo peregrinações…

– Filho, eu estou com fome. Vamos comer um hambúrguer e tomar uma Coca-Cola?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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