Uma ambição desmedida em pauta

Uma enxurrada de adjetivos: só assim seria possível definir o novo espetáculo de Felipe Hirsch e da Sutil Companhia de Teatro. O primeiro deve apontar o desejo absoluto de contemporaneidade, quer dizer, uma vontade cristalina de comentar o nosso tempo. Há uma ambição desmedida em pauta — o diretor deseja focalizar a fragilidade da vida humana, a inexorabilidade da morte, pôr em suspenso a nossa época, criticar o projeto ocidental e toda a ordem civilizada. Para tanto, usou o livro de estreia de Sam Lipsyte, “Subject Steve” (“O paciente Estevão”), ao qual mesclou incontáveis referências pessoais, piadas isoladas, anedotas de geração, sob tom juvenil. O resultado é frágil para o objetivo proposto, o homem em cena é menor do que o cidadão do nosso tempo e não chega perto do tom patético de um Woyzeck, para lembrar um grande modelo teatral histórico.

O texto da peça é híbrido, recorre a uma multiplicidade de procedimentos. A dramaturgia fraturada mistura narração, relato e contracena. A partir de um homem diagnosticado como terminal, uma metralhadora giratória de palavras pretende mostrar e ironizar o vazio humano, os caminhos de uma classe média e de uma burguesia consumistas, ávidas por prazeres, impregnadas de tédio, carentes de inteligência. Há uma insistência — por vezes muito infantil — em pornografia, escatologia, aberrações, drogas e rupturas da lógica dos fatos.

A conclusão é fácil de imaginar — na direção, Felipe Hirsch não conseguiu domar a amplidão do texto. O espetáculo é pródigo em blecautes, longo, cansativo, repetitivo. Em diversas sequências, o peso das palavras é de tal ordem que se poderia falar de teatro-rádio, para ver de olhos fechados. A solução de várias cenas acontece graças a atos de violência ou pancadaria, quiproquó, como na velha tradição cômica popularesca; ao lado deste truque antigo, o recurso às gargalhadas gravadas lembra os gastos programas de humor de televisão, gera a incômoda sensação de uma zorra teatral.

Cena com muita informação

A ambição também persegue o desenho da cena: a cenografia de Daniela Thomas esboçou um set de filmagem sobrecarregado de informação. A impressão é que se pretendia ironizar a ideia do mundo como representação e espetáculo, mas a cena suja, apinhada de objetos, anula tanto o esforço de contar a saga de um anti-herói como o de indicar o absurdo do existente ao redor. Não existe espaço para a performance límpida dos atores, não há um desenho estético da cena.

Resta a chance de fruir o jogo dos atores, engajados com devoção no projeto, envoltos nas belas soluções da iluminação (Beto Bruel) e em figurinos bem resolvidos (Cássio Brasil). Leonardo Medeiros impressiona ao defender com naturalidade uma figura de almanaque com frequência à beira do terror. Guilherme Weber oferece composições hilárias, sempre calcadas em soluções físicas, mecânicas. Marcio Vitor resolve diferentes papéis de forma hierática. Georgete Fadel aposta na caracterização de efeito cômico imediato. Maureen Miranda, Isabel Teixeira, Danilo Grangheia e Pero Inoue completam o elenco com desempenhos corretos.

Diante de um projeto de tal envergadura, marcado por qualidades profissionais indiscutíveis, sério e detalhista, precioso mesmo, é triste reconhecer que o adjetivo final para defini-lo passa ao largo de sua intenção: sintoniza com o tédio. Enfim, uma decepção.

Tânia Brandão|O Globo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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