Uma avenida para Jamil Snege

Lembro como se fosse hoje: perdidos pelas bocadas da Vila Centenário, tarde azul de outono, eu e Paulo Leminski, desgarrados da velha Grafipar, bêbados de um tonel, nos vimos de repente, o que não era incomum, caídos de amor por um desses botecos de subúrbio.

Misto de armazém e balcão de cachaça, – quem discordar há de? – aquilo ali, na tarde fria, era o paraíso. Depois de loas ao ócio e à vodka, não esqueço: o grande Pablo a olhar o chão de saibro à nossa frente, considerou sem esperanças que quando morrêssemos provavelmente ganharíamos o nome de uma daquelas ruelas.

E foi além, implacável na viagem “póstuma”: não passaríamos nunca de um desses vultos paranaenses que, mortos, levam o nome de uma saleta no prédio da Secretaria da Cultura ou da Biblioteca Pública. Mas o difícil mesmo aquele dia foi achar o ponto do ônibus de volta à cidade.

Paulo Leminski virou pedreira-show, graças ao pronto empenho de Jaime Lechinski, então assessor de Lerner, e amigo de fé do poeta. Toda vez que passo pela rua João Gava, o trânsito confuso, as multidões, a floresta de carros e a juventude aflita, recordo a tarde da Vila Centenário e sinto uma saudade assim doída do poeta-irmão, feito um secreto desespero.

E me vingo, profundamente me vingo, de que Leminski não seja uma perdida rua do Boqueirão nem uma saleta da Biblioteca Pública mas um dos espaços mais badalados da cidade. Uebas!

Dez de julho passado, outro poeta-irmão, este também compadre, um dos mais singulares escritores brasileiros, Jamil Snege, se vivo estivesse teria completado 69 anos! Iríamos gozar muito de sua cara. Velhote, hein? Ele que gozava, mordaz, todas as fragilidades…

Ano que vem, 70 anos de sua vida aérea, nas asas do vento! Convertido agora em palavras-poemas, palavras com asas, palavras-navalha, o texto cirúrgico e único, a língua um só saudável e sagaz vilipêndio.

Embora os inúmeros amigos em várias instâncias do poder, nem uma ruela no Boqueirão para celebrar o Turco. Jardinete, me disseram, esses dias… Jamil Snege é nome de um jardinete, acho que em Colombo, ou no Xaxim. É possível um negócio desses? Tudo é possível em se tratando de Snege, inclusive o esquecimento em que cai dolorosamente o ouro literário que nos legou…

Snege não pode ser nome de jardinete, senhores da vereança, senhores da prefeitura, senhores donos do provisório poder! Jamil Snege é bem mais que uma avenida! Que tal algum largo trecho, de muitas pistas, da Linha Verde? Beto Richa, esta é contigo. E não abrimos.Estava certo o Leminski: o paraíso é mesmo um perdido boteco da Vila Centenário.

2008

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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