Uma lágrima por Flávio Migliaccio

Se há momentos que me emocionam e entristecem são aqueles em que um artista – pessoa de elevada consciência e grande sensibilidade –, depois de haver alcançado o sucesso em uma vitoriosa carreira, já no ocaso da vida, decide abreviá-la, saindo de cena de forma dramática e lamentável.

Para citar apenas alguns exemplos mais recentes, isso aconteceu com o americano Robin Williams e com o nosso Walmor Chagas. E agora acontece com o notável Flávio Migliaccio. Ele estava com 85 anos e vivia só em seu sítio em Rio Bonito, no interior do Rio, de onde saía apenas quando havia um trabalho na Globo.

Aguentou o quanto pôde. Até sábado 04 de maio. Explicou o ato por escrito:

“Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos, como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora, num país como este. É com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje! Flávio”.

Flávio Migliaccio era paulista do Braz. Foi um dos dezessete filhos de Domingos Migliaccio e de Jandira Machado, entre os quais a também atriz e comediante Dirce Migliaccio, falecida em 2009. Sempre quis ser artista e logo descobriu a sua veia humorística. Aos 25 anos, estreou no cinema, em “O Grande Momento”, de Roberto Santos; depois, atuaria em “Cinco Vezes Favela”, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, “Terra em Transe” e “Todas as Mulheres do Mundo”. Mas foi na televisão que conquistou o grande público, não só em inúmeras novelas da Rede Globo, mas com o personagem “Xerife”, na série “Shazan, Xerife & Cia., ao lado de Paulo José, e como “Tio Maneco”, na série exibida pela TV Educativa.

Ultimamente, andava deprimido. Escutava pouco e enxergava mal. Às vezes, desabafava com o filho Marcelo: “Meu corpo deteriora-se rápida e irreversivelmente. Daqui para frente, só vai piorar”. Debalde foram todos os argumentos para animá-lo.

O colega e amigo Lima Duarte, de 90 anos, compreendeu o gesto do companheiro de jornada: “Eu te entendo, Migliaccio, porque eu, como você, sou do Teatro de Arena, com Paulo José, Chico de Assis, Guarnieri. Foi lá que aprendemos com o Boal, que era preciso, era urgente, que se pusesse o brasileiro em cena”. Lima relembra os momentos difíceis enfrentados pelos atores durante a ditadura militar e sublinha: “Agora, quando sentimos o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68, 56 anos depois, quando eles promovem a devastação dos velhos, não podemos mais. Eu não tive a coragem que você teve”. E conclui: “Os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue”. É uma referência à fala de um personagem de Bertold Brecht.

Não pretendo enaltecer o ato do grande Flávio Migliaccio, mas digo-lhes que, como Lima Duarte, compreendo o gesto dele.

O saudoso Rubem Alves, que amava como poucos a vida, achava que o ser humano tem o direito de decidir quanto deseja viver e quando deseja morrer – até porque “a morte e a vida são irmãs”. E, com a sabedoria dos grandes mestres, sustentava que é preciso respeitar a vontade do vivente e permitir-lhe a recepção da morte quando a vida deseja ir embora.

Flávio Migliaccio tinha emprego, de vez em quando era convocado para atuar diante das câmaras, queria bem os colegas e era querido por eles, mas, na verdade, sentia-se envolto em uma espessa neblina. Neblina de tristeza e de solidão. E essa neblina nascia dele próprio, no fundo de sua alma cansada. Os dias se tornaram compridos demais, as noites insuportáveis. Passou a faltar esperança, motivo para viver. O mundo não mais lhe pertencia. Ou melhor, estava decepcionado com a humanidade, e achava que o mundo não mais lhe queria.

Drummond captou bem a cena: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus / Tempo de absoluta depuração / Tempo em que não se diz mais: meu amor / Porque o amor resultou inútil / E os olhos não choram / E o coração está seco / E as mãos tecem apenas o rude trabalho / Em vão mulheres batem à porta, não abrirás / Ficaste sozinho, a luz apagou-se / mas na sombra teus olhos resplandecem enormes / És todo certeza, já não sabes sofrer / E nada esperas de teus amigos”.

Flávio não suportou mais esperar que as cortinas do palco se fechassem naturalmente. Arrumou uma corda e tomou a iniciativa de fechá-las.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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