Validades

Agora que estamos todos tão apegados a prazos de validade, etiquetas pespegadas a tudo, me pergunto a validade de uma crônica. O que escrevi muito antes e o que você lê agora é uma inutilidade antecipada – pré-datada pra mim, pós-lida pra você.

Prazos válidos, ou não mais válidos, são categorias novas de dissabores pra mente. Ao redor, tudo se invalida: aos poucos, repentinamente, sutilmente. Nossa leitora ótica interior nem foca direito essa vastidão de inquietações atreladas ao rigor do calendário. Inquietos com o cronômetro etiquetado em produtos, viramos fiscais de prateleiras. Pero, sempre sobra uma infinidade de prazos a trazer aborrecimentos desde o fundo da geladeira, ou dos confins do firmamento.

O Universo, com seu código de barras previsto pra definhar em 5 bilhões de anos, não me azeda. Já o carimbo de validade no meu iogurte matinal não prevê o azedume precoce do laticínio à luz invernal. À noite, o céu coalha-se de constelações feitas de prazos de validade: luzes que venceram há milhões de anos, feixes de lúmen que ainda piscam, rumo a alhures do tempo.

Numa escala menor, o prazo de validade do cachorro é uma coleira mais curta que 15 anos. O cérebro humano vai se invalidando após umas seis décadas. Um sorvete invalida-se ao sol. A mata atlântica tem validade por mais 10 ou 12 gerações, não mais. Os joelhos da calça nova do menino valem por três ou quatro temporadas na pracinha. Os seios empinados tem prazos aprazados pela lei da gravidade. Um pneu largado ao léu expõe sua validade poluidora por centenas de anos.

Tudo vence, vai vencer ou já está vencido. Um canalha eleito não vale nem por um mandato mas dura o dobro, às vezes o triplo. Medicamentos tem prazos precisos, embora precisemos confiar na qualidade da falsificação. O outono expirou e a respiração espirra. Uma rosa é uma rosa é uma rosa até que seu próprio prazo a despetale toda. As pirâmides estão no início, na metade ou no fim da sua validade? O carbono 14 tem seu prazo particular de existência mas vive dando prazos aos outros elementos.

O impalpável também tem prazos: o amor pode ser interminável por um momento e efêmero por um século. A carteira de habilitação você revalida mas o prazer da viagem não. O assombro vale enquanto as sombras não se explicam. O imponderável não foi impresso na folhinha porém depois todo mundo aponta que o vôo valia até a data tal. O que vai ser da eternidade quando acabar o seu prazo de validade?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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