Primavera

Os orientais, sobretudo os japoneses, este povo de delicadezas e de suicídios, têm um haicai para cada estação do ano. Sucintos, brevíssimos, o lampejo do riscar de um fósforo. Impossível, entre eles, passar de uma estação a outra, sem dar a elas as boas-vindas, ou os adeuses. Com pincel e poesia sobre uma folha de papel-de-arroz. Primavera, verão, outono, inverno…

Não sem propósito, cá neste domingo de setembro, em que a primavera reestréia, outra vez me vem a certeza de que a Natureza não se repete. Nem mesmo em se tratando de nova primavera, ainda que velha de tanto reacontecer pela vida afora. Que o diga o vetusto ipê que daqui da janela de casa chega a acender – frondoso e amarelo a exibir a inédita floração de 2007.

Foram outras as flores na primavera passada, outros os ventos e certamente outras as abelhas que voaram por ele num zumbido quase audível na tarde quieta, não o atrapalhasse o escarcéu dos cães e a música dos passarinhos. Daqui todo sacode, pródigo em exibir-se, o velho ipê, com uma arrogância vegetal que é só dele, e insubstituível.Nos jogos florais de há muitos séculos, o poeta Bashô reunia-se com os numerosos discípulos justo quando a primavera abria os olhos nos olhos da flor-do-camaleão, minúscula florinha, da família de nossa popular olhos-de-gato. Não, não a pensem de olhinhos puxados e ademanes nipônicos. A flor-do-camaleão brota em Kyoto no exato dia em que a primavera abre as asas numa profusão de inseto e céu. Primavera/até a flor do algodão/quer ser amarela.

O haicai aí, antigo como a própria primavera, e sempre novo a cada vez, saúda a estação, a lápis-de-cor. E tange a verdade profunda da “impermanência” que nos faz só entes provisórios desta vida que de tão besta chega a ser lírica. Igual que a derradeira folha de uma árvore, que, sem alarde, no outono cai. Não grita nem se desespera – cai. Simplesmente cai na leveza do vento e ao abrigo do chão.Fôssemos assim os humanos, a vida seria só um livro em branco onde grafaríamos o registro humilde de nossa passagem, não menos humilde, cá por este desolado mundo. Entretanto, grandiloqüentes e angustiados, aflitos e sem esperança, mesmo face ao mais banal dos eventos, o Ego, este obscuro pesadume do ser, a tudo vigia e controla, a tudo deseja ao seu modo e mesquinho traçado. Um risco além e tudo está por um fio.

Aprendamos, senhores, com a primavera que nasce, e, por nascer, já passa, senhora de hibiscos e gerânios, de alamandas e azaléias. Insistir em deter (com que profana engenharia?) o andado das horas é cair num poço sem fundo. Na mitologia maia, o último homem que tentou deter o Tempo ainda hoje gira e gira em sua agônica espiral de medo e pêlo e agrura.Prefiro a novidade que, em toda nascente primavera, feito um recado da vida, o velho ipê me oferece desde a janela de onde o contemplo com olhos que, ai, também um dia foram meus.

23|09|2007

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Wilson Bueno e marcada com a tag , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.