Antes da reunião na casa de René Dotti, narra o Manfredini, em episódio que eu não sabia, houve uma reunião entre Adélia e Wilson, na Confeitaria Schaffer, que também ficava no calçadão. Ali alinhavaram a publicação e deram um nome provisório ao jornal.
No citado domingo, todos presentes, chegam por último o Nelsinho e o Wilson Bueno. Bueno não tinha carro e dependia da carona dos amigos, dos ônibus ou dos táxis, conforme o horário dos dias, das noites e das madrugadas. Wilson, sempre extrovertido, chegou tímido, com poucas palavras, sentindo o ambiente onde pisava. Depois de alguns rodeios, de ambos os lados, Bueno foi indagado pelo professor René e começou a falar dos seus projetos (que também eram os da Adélia Lopes, segundo a reunião na Schaffer).
Aqui vale um parêntese: O panorama do jornalismo cultural do Paraná era desolador. O Estado do Paraná tinha a coluna do Aramis Millarch, chamada Tabloide, e alguns textos da Adélia e do Aurélio Benitez. A Gazeta do Povo tinha uma cobertura paupérrima, onde se destacava uma coluna de artes plásticas da professora Adalice Araújo, que veio a ser a primeira diretora do MAC na gestão René Dotti. Maiores informações só na citada coluna do Dino Almeida ou nas matérias que vinham prontas das Assessorias, como já relatado. A Folha de Londrina cobria praticamente o Festival de Música da cidade e as peças dirigidas pela Nitis Jacon, diretora do histórico Grupo Proteu. O Jornal do Estado tinha uma cobertura pequena, onde se destacava a coluna de teatro a cargo da Celina Alvetti, que era muito alimentada pelo ator Ivam Cabral, que depois se radicaria em São Paulo, fundando o Grupo Satyros que faz um teatro de altíssima qualidade há 30 anos. Era isso e talvez uma ou outra coisa que agora me escapa. No mais, os jornais se limitavam a publicar a programação das TVs e dos cinemas, não raro com os horários errados. Justiça seja feita, tempos depois, a Adélia, com o decidido apoio do diretor de redação Mussa José Assis, conseguiu emplacar um suplemento cultural chamado Almanaque, n´O Estado do Paraná.
Bueno imaginava um jornal radical, moderno, pujante, inquietante, que botasse “prá quebrar” e abalasse as estruturas. Teria a colaboração de nomes consagrados e desconhecidos, que ele dizia saber onde localizar; cobriria todas as áreas da cultura; primaria pela qualidade do texto, das ilustrações e das fotografias. Diagramação arrojada, tipos novos, fotografias de ângulos inusitados. Queria um jornal cultural diferente de tudo o que era feito no Brasil, inspirando-se em modelos antigos, mas inovando a perder de vista. Queria inquietar os quietos, cansar os descansados, atormentar os pacíficos. Continuou o seu discurso empolgado, afirmando que iria fazer, simplesmente, o melhor jornal cultural do Brasil. Tudo aquilo era música para o René Ariel Dotti.
Sentindo que dominava a partida, Wilson Bueno idealizou que o jornal teria uma equipe enxuta, escolhida a dedo por ele. Não abria mão disso. O professor René concordou de plano, com alguns muxoxos do Aramis. Continuou descrevendo o jornal que imaginava, já pautando alguns assuntos a serem abordados nos primeiros números. Bueno começava a encantar a todos. Os assuntos imaginados por ele eram de abalar a modorra que tomava conta da imprensa cultural do Paraná. Iria, certamente, dar o que falar. Adélia Lopes e Nelsinho eram os mais entusiasmados e concordavam com tudo o que Wilson dizia. Lá pelas tantas, sentindo que o jogo estava ganho, Wilson Bueno começou um papo sobre a importância de um jornal bancado pelo Estado, ou seja, com o dinheiro do contribuinte. As colaborações não seriam pagas. As pessoas convidadas para os números iniciais nada receberiam pelos seus artigos, afinal estariam prestando serviço público relevante. Depois, as colaborações chegariam aos borbotões, vindas de todos os cantos do Brasil e até mesmo do exterior. Os maiores nomes da cultura brasileira iriam escrever de graça para um jornal do governo do Estado do Paraná pelo prazer e orgulho de colaborar com a iniciativa que ele já imaginava de pleno êxito.
As despesas, dizia o Wilson, seriam apenas com a pequena equipe que iria trabalhar em dedicação exclusiva, custos com arte e diagramação, fotografia, papel e impressão. De vez em quando, a passagem e uma ou duas diárias para um repórter que ele mandaria ao interior. Tudo isso caía muito bem para um grupo de trabalho que tinha plena consciência de que a dotação da Secretaria da Cultura era ínfima, menor que 1% do orçamento geral do Estado. René Dotti se encantava cada vez mais.
Percebendo que o ambiente era de todo favorável, Wilson Bueno deu o pulo do gato: disse que não cabia ao Estado produzir um jornal para vender. Se o jornal fosse comercializado, o Estado estaria se desvirtuando das suas obrigações de fomentar a cultura. Afirmou também que o Estado não tinha capacidade de distribuir o jornal por todas as cidades do seu território. Para resolver a questão, propôs: o jornal seria encartado em todos os outros jornais do Paraná, gratuitamente. Só Curitiba, naquele ano, tinha 9 jornais. Assim, toda a população compradora ou assinante dos jornais do Paraná receberia o jornal. A tiragem seria enorme e uma parte seria reservada à distribuição por mala direta, para as pessoas que lidavam com a cultura Brasil afora e até mesmo no exterior. Continuando, disse que queria que o sujeito que comprasse a Tribuna para conhecer detalhes do pavoroso crime do dia anterior, desse de cara com um texto ainda mais realista do Nélson Rodrigues (de quem Bueno era amigo desde os tempos de O Globo). Que quem comprasse a Gazeta para saber as notícias nacionais e internacionais, se deparasse com uma crítica literária do Léo Gílson Ribeiro. Que quem comprasse o Estado, para conhecer as últimas da política paranaense, pudesse conhecer uma crítica do Sábato Magaldi ou um poema de Helena Kolody. Que o assinante da Folha de Londrina pudesse ler Paulo Leminski pela primeira vez. Aquilo era a 9ª Sinfonia no ouvido do futuro Secretário de Cultura. Para tanto, arrematou o Wilson Bueno, o jornal teria que ser no formato tabloide, para ser encartado com facilidade nos demais jornais que eram, quase todos, standard. A periodicidade seria mensal.
René Dotti, que tinha como uma das metas mais importantes para a futura gestão a interiorização das ações da Secretaria de Estado da Cultura, até então baseadas quase que exclusivamente em Curitiba, onde se localizavam o Teatro Guaíra, os museus e a quase totalidade do patrimônio histórico e artístico do Estado, vibrava com a ideia. Como sempre fazia quando encontrava um desafio pela frente, exclamou Maktub.
Wilson Bueno foi além. Disse que planejava mandar gente viajar por todo o Estado para colher depoimentos dos pioneiros das principais cidades do Paraná antes que morressem. Que Curitiba tinha excelentes tradutores que ninguém conhecia e pretendia produzir novas traduções de clássicos, como Shakespeare, Dante, Joyce, Borges…
Por derradeiro, nesta fase da conversa, Wilson fez um pedido. O Secretário René Dotti só poderia ler o jornal depois de impresso. Dotti topou sem mais delongas, e cumpriu o trato durante todo o período em que foi Secretário.
Lá pelas tantas, batido o martelo, alguém indagou pelo nome, acho que foi o Aramis (era tudo jogada ensaiada). Mas, antes que de uma sugestão, bateu a fome e o pessoal foi comer. Aqui passo a palavra ao Manfredini:
“… Adélia e Bueno ocuparam uma das pontas da longa mesa, um diante do outro. Em certo momento, maneiroso como sempre, Bueno inclinou-se diante da jornalista e disse: “Eu acho o título Espaço e Tempo muito bom, o espaço do nosso tempo, muito interessante. Mas fiquei pensando: será que ele não remeterá ao que não desejamos, ou seja, uma publicação com traço acadêmico?
“Adélia pensou.
“Bueno prosseguiu:
“Que tal colocássemos um título, digamos, mais ligado à nossa cultura, à nossa tradição? Algo assim como Nicolau.
“Adélia, de pronto, ergueu-se e quase gritou:
“Professor René, já temos o título do jornal”.
Foi a explosão! Todos concordaram. Alguém lembrou que a mais importante publicação cultural do Paraná foi a revista Joaquim, do Danton Trevisan. Não deixava de ser uma homenagem ao mais importante escritor do Estado.
O Constantino Viaro, acho, pois posso estar com a memória fraca, disse que tinha adorado o nome, mas teve uma premonição na hora: “Vão dizer que é nome de polaco! Os italianos e as outras etnias vão chiar!