Você pode imaginar a minha excitação infantil quando ao caminhar entre o 10˚ e o 12˚ arrondissement de Paris, ao longo do Canal de Saint-Martin, vindo de uma outra visita cinematográfica ao bar do Hôtel Du Nord, cheguei na cinemateca francesa e entrei na exposição Deux Temps Trois Mouvements sobre a obra de Jacques Tati: Cenários, objetos usados pelo personagem Monsieur Hulot, impressões visuais e sonoras de seus filmes, desenhos originais de Pierre Etaix, instalações inspiradas em suas obras, entrevistas com personalidades influenciadas pelo cinema de Tati, como Michel Gondry, David Lynch, Wes Anderson, Jean-Claude Carriere entre outros. Lá estavam expostos o peixe-chafariz do jardim da casa da família Arpel de Mon Oncle, a bicicleta!, o célebre cachimbo, o guarda chuva e o sobretudo de Sr. Hulot, a raquete de tênis de suas férias, partes dos cenários e dos objetos construídos para o filme Playtime batizados “Tativille”: os chapéus decorados, o painel de controle e interfone, a poltrona sonora, o sinal de neon da entrada do restaurante.
Ainda nessa exposição consegui minha cópia de “Tati Sonorama!”: uma completa coleção das trilhas sonoras dos filmes de Jacques Tati. Existem outras três edições, mas nenhuma completa e remasterizada a partir das fitas originais. A edição limitada de Sonorama! ainda contém uma seleção dos clássicos efeitos sonoros de seus filmes (trânsito, cães latindo, crianças brincando, aeroportos, repartições) e um encarte cuidadosamente compilado, repleto de informações sobre os fabulosos criadores dessas trilhas. Textos sobre Francis Lemarque (criador da brilhante trilha do filme Playtime) e do polonês Alain Romans (Mon Oncle e Les Vacances de Monsieur Hulot), parceiro de Django Reinhardt e Josephine Baker.
Os filmes de Jacques Tati são frutos de uma profunda análise das questões do mundo moderno ocidental. A indústria, a arquitetura, o design, a moda, a tecnologia, a superficialidade das relações sociais; nada fugiu da observação cômica do mestre francês. Jacques Tatischeff era filho de pai Russo. Ganhou certa notoriedade trabalhando como clown em cabarés de Paris no final da década de 30 e durante a guerra. Seu primeiro filme Jour de Fête ainda não apresentava o seu mais famoso personagem. A partir de Les Vacances de Monsieur Hulot (As Férias do Sr. Hulot), filme de 1953, Tati edificou uma história clássica construída com um repertório de poucos filmes. Nestes filmes, poucos diálogos e muitas gags visuais e sonoras, elaboradas com muito virtuosismo e emoção.
Tati gastou quase uma década para filmar, em 70mm, o seu projeto mais ambicioso: Playtime. Gastou também suas economias e boa parte de sua saúde. Truffaut definiu Playtime como um filme de outro planeta. O fracasso comercial desta obra-prima quebrou financeiramente Jacques Tati e o levou a uma profunda depressão que o acompanhou até sua morte no início da década de 80. Tati ainda realizou mais dois filmes. Entre eles, o não menos genial, Traffic. Antes deste, planejou uma colaboração com os irmãos Mael da banda Sparks, brilhantes criadores dos discos Kimono My House e Propaganda. A ficção futurista chamaria Confusion, mas não foi realizada. Sylvain Chomet, criador de As Bicicletas de Belleville, lançou em 2010 o filme de animação O Ilusionista, baseado em um roteiro não produzido por Tati, escrito no auge de sua força no período entre Mon Oncle e Playtime. O polêmico roteiro é aparentemente dedicado à sua primeira filha, abandonada durante a segunda guerra, embora a nova produção não admita isto.
No início do ano passado, recebi uma ligação comovida de Daniela Thomas que acabara de ver a restauração da cópia de 70mm de Playtime no Festival de Berlim de Cinema. Mais de quarenta anos depois, o festival justificava, intelectualmente, a condição de Jacques Tati de ver sua obra-prima projetada por equipamentos 70mm (Tati não gostava de planos fechados), parte do motivo de sua ruina. Foi ele também que educou nossos sentidos para as suas cores. O preto, o branco, o verde acizentado, o castor, a madeira, o eventual vermelho e aquele azul impossível que vi na tela, naquele dia, em Mon Oncle.
Felipe Hirsch (O Globo)
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