Tive o privilégio, como Borges e Marcel Proust, para ficar nesses excelsos exemplos, de conviver, por muitas décadas, eternamente solteiro e desprevenido, com mãe tão intensa quanto onipresente. Perco-a, agora, buscando permanecer à altura de sua maior lição – a da coragem acima de tudo, e da humildade como imposição ética e insubstituível.

Uma coisa, entanto, é fato: esta crônica aqui é atravessada pelo diapasão, que é quase um uivo, da eterna Maria Callas em “La Mamma Morta”- ária da ópera Andrea Chénier, de Umberto Giordano (1867-1948). O canto é mais que um lamento; é a exatidão do grito.

Quase toda minha geração, já dobrando o Cabo da Boa Esperança, perdeu ou está na iminência de perder os principais responsáveis pelos que nos jogaram cá neste vale de lágrimas. A intenção foi boa, admitamos, ainda que ela tenha esbarrado, como diz o genial Yasunari Kawabata, numa questão insolúvel:

“Nascer neste mundo significa ser abandonado por Deus”.

À dona Cida dediquei as fábulas de Cachorros do Céu, livro que, lançado pela Planeta, ficou entre os exíguos finalistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura/2006. Pé-quente, a minha inesquecível “velha”. Uma honraria que, ao final e ao cabo, a ela pertencia e a ela continuará pertencendo. São dela aqueles zôo-racontos urdidos nas noites de nossa vila pequena.

Como Deus não perdoa nem mesmo os inocentes, sofreu o que não merecia nos meses em que ficou internada no Hospital São Vicente, aos cuidados do doutor César Martini. Mas o que pode a ciência dos homens frente às agruras do fim? A verdade é que morreu como sempre viveu – serena feito um passarinho. E a sua vida agora está completa.

Já septuagenária, deu-nos a todos uma lição: concluiu o segundo grau, no curso supletivo do Colégio Tiradentes. Lia de um tudo – de Dostoiévski a Paulo Coelho, das Sabrinas da vida à poesia de Helena Kolody. Aliás, a poeta a amava do mais intenso amor e pelos aniversários de dona Cida cantava-lhe, ao telefone, cançonetas ucranianas que foram dela o maior orgulho.

Ser privilegiada pela mais importante poeta do Paraná era um prêmio que se repetia todos os anos, nos julhos de seus aniversários humildes. Detestava os natalícios, mas desde cedo esperava o telefonema de Kolody que, aliás, enquanto viveu, não esqueceu deles uma só vez.

O que fica de seu talhe sereno, de suas sombrinhas coloridas, de seu subir e descer de ônibus, quase octogenária e nunca exausta? O que fica de seus varais, balouçantes de vento e roupas, nas manhãs de sol do quintal curitibano?

Do segundo andar de minha casa avisto o seu telhado. Pura, aérea, ela que me contou, ao longo da vida, as histórias que aprendi a recontar, agora é só uma imaginação. Onde anda? No vento?

Mas que poder, meu Deus!, este com que dona Cida ainda move tudo o que em mim é a realidade de sua ausência e o exercício inútil pelo qual tento, em vão, enjaular sua memória.

Wilson Bueno (21/10/2007) O Estado do Paraná.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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