Ao abrir os olhos pela manhã, ali estava ela de novo, sua amiga de todas as horas. A nostalgia. Desta vez, vestida a rigor: trazia um desencanto, uma solidão, que só encontrara antes nos fantasmas e nos que vivem no deserto. Resolveu entendê-la. Visitou praças, velhos quartéis e casas tombadas. Procurou no vento, esgueirou-se por becos, mangues e quebradas – viu sombras, assombrações. Até que a noite venceu o sol e – repetindo a mesma cerimônia desde os tempos ilógicos – convidou a lua a se exibir. Tendo chegado a hora, voltou ao apartamento. Na cobertura montara um jardim com plantas perfumadas que se refletiam no espelho d’água durante as noites de lua cheia. Tirou a roupa, subiu no parapeito. E começou a uivar. Uivou tanto que pêlos magníficos brotaram do corpo e a vestiram toda. Uivou durante horas. Uma alcatéia reuniu-se nos telhados só para ouvi-la. Apenas não conseguia entender aquelas lágrimas. Lobos uivam e se lamentam, como fazia agora, mas estava chorando e não entendia por que. Identificou, lá no fundo, algo com residência na infância, saudades do que não vivera, uma impressão doída de não ter achado seu espaço no universo. Mas, bobagem, era adulta. Não precisava explicar nada, nem as lágrimas, nem as patas, nem o focinho. Nem mesmo a troca de olhares com o lobisomem que fora apreciá-la desde os primeiros fraseados naquele telhado. A manhã estava nascendo, tinha que ir ao mercado, passar no banco, assistir ao último Woody Allen. Então, após uivar e chorar ainda um pouco, disse bom dia para a noite, boa noite para o dia, estava começando tudo de novo, Raquel, a amiga da nostalgia.

Almir Feijó.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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