Salvador Dali.

Em 1963 convocarei meus soldados para uma missão heróica no Monument Valey. Eu e a 7ª Cavalaria atacaremos a tribo nômade dos Comanches, liderada pelo valente chefe Águia de Um Olho. Só que agora será ao alvorecer, com o sol nascendo – da primeira vez, não tínhamos qualquer experiência em combate noturno e acabamos destroçados pelos peles-vermelhas. Logo depois, a milhares de quilômetros dali, numa fazenda de café entre Paranavaí e Paraíso do Norte, mergulharei no Rio Ivaí revolto e barrento. Voltando à tona, só eu verei uma cena única: a conversa, lá nas árvores, entre Sacy Pererê e o Rei Arthur empunhando Excalibur (ele, pelo ar tristonho, já desconfiado de Guinevere). Em casa, espiarei todas as empregadas pelo buraco da fechadura enquanto se banham, até Maria, a mulata, abrir a porta e revelar-se inteira, envolta nas rosas do sabonete Phebo. Darei o mesmo berro lancinante dentro da Igreja do Coração de Maria – quando sair, a imagem da santa, lá no alto, estará chorando, ofendida. Entrarei num avião da VASP para São Paulo e, em pleno vôo, uma janelinha se abrirá – adorarei, porque aos 10 anos ainda não sei o que é morte. Durante o dia correrei atrás do vento, para que me conte porque chora. À noite olharei para o céu atrás de um nome para cada estrela do firmamento. Depois, dormindo, levarei grandes papos com o xerife de Tombstone, John Vâine. E, tocado pela paixão, beijarei os lábios mais carnudos que já beijei em qualquer tempo, Brigite Bardot em “E Deus Criou A Mulher” (à qual fui apresentado graças à gentileza do porteiro do Cine Flórida, ‘O Monstro’). Ao acordar, ouvirei meu tio Raul Mensing tocando As Polonaises para seus fantasmas. Mais tarde, ao cruzar com assombrações, terei medo, mas já não troco de fantasmas, quero os mesmos de sempre – afinal, após tantos anos, ficamos íntimos. Começarei a duvidar da existência de Papai Noel e de Deus, só para me restabelecer com eles depois dos quarenta, pacificado. Continuarei a admirar mais o leão do que o elefante, fumarei aos 14 meu primeiro cigarro, um Continental sem filtro. Assistirei Bonanza e Os Flintstones pela TV comendo cachorro-quente com mostarda amarela. Irei à TV Tupi, aos sábados, para ver o Cirquinho Canal 6; aos domingos de manhã, estarei na Rádio Clube Paranaense para participar do programa de auditório do Souza Moreno. Entrarei de novo na casa abandonada da Engenheiros Rebouças e reconstruirei cada aposento do meu castelo indevassável, onde moram todos: os Irmãos Marx, o capitão Ahab, O Cavaleiro Negro, Mozart, Laika, a cadelinha abandonada pelos russos no espaço. Tom Mix, Roy Rogers, O Gordo e O Magro, O Patrulheiro Rodoviário. Netuno, Diana. E, ilógica, materialíssima, outra deusa: Esmeralda, a Bunduda, que me pediu em casamento e tivemos uma lua de mel arrasadora ali mesmo.
Em 2008 meu pedido para Papai Noel será o mesmo de sempre, jamais atendido. Uma cápsula do tempo que me leve de volta, todas as noites, nos sonhos, para o único território em que não há pecado: a infância.
Almir Feijó.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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