A escritora Toni Morrison, com imponência afro digna de uma personagem de A Cor Púrpura do Cairo, o filme de Steven Spielberg, grande e negra, se equilibra nas ruas – e calçadas – de pedra (do século 17) das vielas de Paraty. Imagino como deve ser aquilo tudo em dias de chuva – as pedras molhadas, temerariamente escorregadias. Em meio ao casario colonial e às ruas apinhadas, a autora, entre outros, do antológico Beloved (Amada), Nobel de Literatura 1993, acompanhada de um pequeno séquito, pára diante do pano estendido na calçada onde os índios guaranis (da reserva de Paraty Mirim) expõem suas bugigangas. Raros os índios que falam ou entendem português. Informam o preço do artesanato com os dedos da mão.

Ms. Morrison dispara um inglês incompreensível, novaiorquino demais ao momento e à ocasião. Para os índios, claro, tanto faz – português, ou inglês, é tudo um arrazoado extra-terrestre…

De cócoras junto ao pano sujinho, na calçada, lembro a bisavó guarani – uma das mais remotas lembranças de minha vida -, caçada a laço no interior paulista. Levanto – do chão onde estão expostas as artesanias índias -, a pequenina escultura de um quati, feita a canivete, na corticeira, madeira muito própria para isso.

Não sei por que me vem à mente a imagem – jamais esquecida – do meu compadre Jamil Snege que, vez ou outra, aplacava neuras e ansiedades, esculpindo coisinhas miúdas nos pedaços de corticeira que Aroldo Murá lhe trazia da chácara de São José dos Pinhais. Mas o Turco, claro, é só uma saudade.

Apresento o artesanato e explico a Ms. Morrison que aquele animalzinho ali é o quati, típico da fauna brasileira. “Coêití?” – se espanta a escritora, curiosa, menos pelo bicho em si do que pela estranheza com que a palavra a desafia. A indiazinha, vestido de chita, pés no chão, cabelo ao vento, ri escondendo a boca. Com as duas mãos. Ms. Morrison não entende, e quer explicações, que eu também não sei dar, por quê o rabo do quati é quase maior do que o corpo… “Brazilian animal” – desconverso, tentando sair pela tangente.

“Brazilian animal? Like the tiger?” ( Animal brasileiro que nem o tigre?) “Não, Ms. Morrison, o tigre não é um animal brasileiro. Aqui temos um similar – a onça pintada.” “Once pintêda?” “Não, Ms. Morrison, não é “once” nem “pintêda”… A afetuosa Nobel de Literatura, de uma simplicidade sóbria, contida, tenta mais umas duas ou três vezes, a intervalos gargalhantes, pronunciar “onça pintada”, sem conseguir dar à “onça” o nome que a onça merece.

Pago os 10 reais com que, as mãos espalmadas, a indiazinha me informa o preço do quati. Presenteio Ms. Morrison com o típico bichinho tupiniquim, sem deixar de lhe informar que, por sua docilidade, ele é quase sempre brinquedo e animal de estimação entre as crianças de muitas tribos brasileiras.

Encantada, e agradecida, enfia o quatizinho na bolsa, dá outro largo sorriso, e seguimos, na manhã luminosa de Paraty, nos equilibrando nas pedras centenárias das ruas – com cuidado, com muito cuidado; ela mais do que eu.

Wilson Bueno, O Estado do Paraná, Almanaque, 27 de agosto, 2006.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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